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“A internet é o principal veículo de pregação de ódio”, afirma João José Reis

O historiador baiano João José Reis (65), referência mundial para o estudo da história da escravidão no século XIX e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), fez um discurso marcado pelo protesto, ao agradecer o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras (ABL) a escritores pelo conjunto da obra. Para ele, “a internet é hoje o principal veículo de pregação de todos os ódios, inclusive do ódio racial”. A cerimônia de entrega da honraria aconteceu no dia 20 de julho, quando a instituição comemorou 120 anos.

O docente, autor de livros como “Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês”, assumiu o tom crítico para refletir sobre questões como o racismo, sistema carcerário brasileiro, educação e política. Ele acredita que invocar a escravidão é necessário para o entendimento das desigualdades contemporâneas.”Durou perto de 400 anos, contra apenas 129 anos de liberdade (…) O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão”.

Segundo João José Reis, “[a escravidão] deixou marcas indeléveis na sociedade que nasceu de seus fundamentos e ainda nos assombra com fantasmas de várias espécies – as desigualdades sociais e raciais, o racismo sistêmico, o racismo episódico, agora mais assanhado pelo anonimato da internet (já chamado “racismo virtual”), hoje o principal veiculo de pregação de todos os ódios, inclusive do ódio racial”.

Confira a íntegra do discurso:

Sou grato aos membros desta Academia por considerar minha obra merecedora do Prêmio Machado de Assis. Sendo um historiador da escravidão (embora não apenas) permitam-me imaginar a concessão do prêmio, quando a Academia cumpre 120 anos, como uma homenagem àqueles dentre os seus fundadores que, entre outros, militaram contra a escravidão — penso em Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e, muito especialmente, Machado de Assis, que dá seu nome a este laurel. Neto de escravos, Machado, além de abolicionista arguto, radical, embora discreto, foi a seu modo historiador da escravidão, no que acompanho um de seus mais destacados intérpretes, Sidney Chalhoub, também historiador da escravidão.

Outro historiador, o acadêmico Alberto da Costa e Silva, aqui presente, avaliou perfeita e concisamente o peso desse sistema de trabalho e modo de vida para o Brasil: “A escravidão foi o processo mais importante e profundo de nossa história.” Não podia ser diferente: durou perto de 400 anos, contra apenas 129 anos de liberdade; o tráfico transatlântico luso-brasileiro importou quase metade dos 11 milhões de suas vítimas; e o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. Ela deixou marcas indeléveis na sociedade que nasceu de seus fundamentos e ainda nos assombra com fantasmas de várias espécies – as desigualdades sociais e raciais, o racismo sistêmico, o racismo episódico, agora mais assanhado pelo anonimato da internet (já chamado “racismo virtual”), hoje o principal veiculo de pregação de todos os ódios, inclusive do ódio racial.

O Brasil precisará de esforço hercúleo para livrar-se desse passado que se recusa a passar. O principal caminho talvez seja mais informação, mais educação e ações afirmativas, umas entrelaçadas com as demais. Neste sentido, algumas medidas reivindicadas pelos movimentos negros foram adotadas nas últimas décadas. Entre elas, destacaria três: as cotas educacionais, o ensino da história afro-brasileira e a criação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.

As cotas sociorraciais para ingresso nas universidades públicas já resultaram em mudança na cor dessas instituições, corrigindo em muitos casos a quase exclusividade branca nos cursos de maior prestígio – Medicina, Direito, Engenharia. Apesar de problemas aqui e ali, as cotas estão dando certo.

A introdução, no ensino fundamental e médio, de disciplina voltada para a história e a cultura afro-brasileiras, com ênfase na história da África, prometia uma equiparação a conteúdos sobre a história da Europa. Lamentavelmente, a disciplina desapareceu da nova Base Nacional Comum Curricular. E a África voltou a ser emparedada naquela acepção, denunciada por Cruz e Souza, de “África grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos, África dos suplícios e das maldições eternas”, enfim, a África que predomina na grande mídia, refém de uma “história única”, na expressão certeira da escritora nigeriana Chimamanda Adichie. Torço pelo retorno da África às escolas.

Uma história de outras vozes está representada na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – a UNILAB, implantada a partir de 2011 como um gesto, ainda que acanhado, de solidariedade com um continente pilhado pelo tráfico luso-brasileiro de cativos. Essa instituição acolhe em suas salas de aula quase mil alunos africanos, mediadores qualificados de suas Áfricas com o Brasil, jovens que recebem pequena bolsa mensal de 530 reais. Pois a comunidade da UNILAB esteve ameaçada recentemente com o corte desse minúsculo item do orçamento nacional. Urge defender a UNILAB!

Políticas de inclusão racial, além do esforço para educar e informar todos os brasileiros sobre a imensa contribuição dos africanos e seus descendentes para a formação histórica e cultural do país, são, entre outras, medidas necessárias – não sei se suficientes – no combate ao legado nefasto da escravidão. Prefiro acreditar que seja produto da ignorância, e não desfaçatez, gestos de delinquência simbólica como batizar um restaurante chique de Senzala. Desejo, desejamos um país onde não seja preciso uma jovem negra empunhar, numa recente manifestação de rua, cartaz que dizia: “A casa-grande surta quando a senzala aprende a ler.”

Invocar a escravidão passou à ordem do dia. Com uma maioria de detentos negros (cerca de 60%) amontoados em espaço exíguo, nossas prisões são comparadas a senzalas onde não é servida a boa comida do restaurante Senzala. Comparação talvez injusta, porque a vida de seus escravos valia mais para o senhor do que parece valer a vida dos presos para os governos e a sociedade que, conivente, se cala. Preso não conta como cidadão, ele é preto, ou, se branco, é também preto de tão pobre – já acusou Caetano Veloso. A precariedade da cidadania, filha da desigualdade social e racial, tem sido vinculada ao passado escravista com insistência. Ainda na semana passada, Milton Hatoum escreveu em sua coluna de O Globo: “Quase quatro séculos de escravidão, e mais de um século de uma democracia manca, interrompida por várias ditaduras, só poderiam gerar uma sociedade extremamente desigual.”
Há, no entanto, outra dimensão inquietante nessa ordem de questões, que é quando, em vez de alegoria, a escravidão se insinua como dado de realidade efetiva ou em construção.

Como no passado, o ciclo começa com o tráfico – de trabalhadoras e trabalhadores sexuais, domésticos, industriais ou rurais. Imigrantes legais e ilegais são com frequência resgatados de porões insalubres nas grandes cidades, onde trabalham, moram e morrem. Na zona rural chovem denúncias de pessoas submetidas a trabalho (forçado, exaustivo, degradante) análogo à escravidão, matéria que hoje mobiliza pesquisadores e membros da Justiça do Trabalho numa discussão que já ganhou foro internacional.

A recentíssima reforma trabalhista causa temor a quem entende do assunto. Segundo o auditor fiscal do trabalho Luís Alexandre farias, “as mudanças criam condições legais e permitem que a legislação banalize aquelas condições que identificamos como trabalho análogo ao escravo”. E a respeito do princípio do negociado sobre o legislado, o procurador do MPT Maurício Ferreira Brito, que encabeça a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, advertiu sobre o perigo da escravidão voluntária: “A depender do que se negocie”, ele alertou, “você pode legalizar práticas do trabalho escravo.” Seria uma graça que este procurador fosse tão ouvido quanto os de Curitiba. Faltou falar da licença agora dada ao capital para empregar a mulher gestante em ambientes insalubres. Não me convencem as ressalvas da lei: se isso não é trabalho degradante, o que mais será?

Sobre a reforma trabalhista, aceitem um exercício de imaginação pessimista. Não resisto a comparar o “trabalho intermitente” ali contemplado com o sistema de ganho ou de aluguel nas cidades escravistas: no primeiro caso, o senhor mandava o escravo à rua para alugar ele próprio sua força de trabalho; no segundo, o senhor escolhia um locatário. Circulava o escravo ao ganho ou de aluguel entre um e outro e mais outro empregador, como cumprirá fazê-lo o trabalhador intermitente do novo Brasil. Um professor, por exemplo, poderá, como autônomo intermitente servir em vários estabelecimentos de ensino, um dia num, no dia seguinte mais um, depois ainda outro. Nascerá, assim, o professor ao ganho.

Some-se a recente Lei da Terceirização e alcançamos o quadro quase completo de precarização radical do trabalho. A terceirização agora vale para atividades fins. Ainda no setor do ensino, empresas que antes limitavam-se a fornecer empregados para atuar na segurança ou na limpeza, poderão doravante oferecer professores a escolas, faculdades e universidades, e fazê-los circular de acordo com a demanda do mercado. Nascerá, então, o professor de aluguel.

Por felicidade, já passou meu tempo de ser professor ao ganho ou de aluguel. O emprego em regime de dedicação exclusiva na Universidade Federal da Bahia deu-me a oportunidade de ser um professor pesquisador. À minha universidade e aos órgãos de fomento de pesquisa, em especial ao CNPQ, eu agradeço ter podido escrever a obra historiográfica agora premiada. Dela já falou, com generosidade, o professor José Murilo de Carvalho.

Queria apenas acrescentar que meus livros, artigos, capítulos em coletâneas etc, foram e continuam a ser escritos com paixão pelos temas de que tratam, sem o selo de garantia da objetividade perfeita exigida pelo positivista. Busquei, sim, a compreensão weberiana. No entanto, não permito que minhas inclinações ideológicas e minha utopias pautem as interpretações que faço dos processos, episódios e personagens sobre os quais escrevo. História panfletária, nem pensar! Me curvo às evidências que brotam dos arquivos, e elas não cessam de surpreender com um universo muito mais complexo do que caberia numa explanação fácil e porventura maniqueísta, que divida o mundo entre o herói e o bandido.

Meus livros são povoados de escravos que fogem de toda parte para toda parte, criam quilombos nas periferias da Cidade da Bahia ou nos mangues de Barra do Rio de Contas, se levantam em nome de Alá e de Ogum, mas nesses escritos também se encontram escravos que negociam com seus senhores um cativeiro menos opressivo. Escravos que querem e senhores que permitem a acumulação de bens e a compra da alforria. A maioria de meus personagens têm nomes, subjetividade, não são peças passivas da máquina escravista. Bilal Licutan, Luiz Sanin, Manoel Calafate, João Malomi, Francisco e Francisca Cidade, Zeferina, homens e mulheres à frente das revoltas escravas baianas. O alufá Rufino José Maria, liberto malê que virou cozinheiro de navio negreiro e pequeno traficante transatlântico de gente. Domingos Sodré, adivinho e curandeiro nagô que fornecia beberagens a escravos para amansar seus senhores, mas era ele próprio senhor de escravos. Manoel Joaquim Ricardo, dono de dezenas de escravos, liberto haussá que prosperou a ponto de ser contado entre os homens que formavam os 10% mais ricos de Salvador. E alguns outros mais…

Contudo, termino com um aviso aos navegantes: a ascensão social aconteceu para poucos escravos desembarcados ou nascidos no Brasil. A maioria morreu escravizada. No balanço final, fico com Joaquim Nabuco, que escreveu: Não importa que tantos dos seus filhos espúrios tenham exercido sobre irmãos o mesmo jugo, e se tenham associado como cúmplices aos destinos da instituição homicida, a escravidão na América é sempre o crime da raça branca, elemento predominante da civilização nacional…

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Jornalista e escritor Zuenir Ventura é eleito para a cadeira de Ariano Suassuna na ABL

Um dos jornalistas mais respeitado do Brasil, Zuenir Ventura (83), é o mais novo imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL). Autor de grandes clássicos do jornalismo literário, com mais de 50 anos de carreira, ele passou pelas principais redações do país, sempre deixando a sua marca de ética, inovação e criatividade. Agora, ele vai ocupar a cadeira 32, que ficou vaga com a morte do acadêmico, dramaturgo, poeta e romancista Ariano Suassuna, em 23 de julho passado, em Recife (PE). Zuenir foi eleito, na tarde desta quinta-feira (30), com 35 dos 37 votos. Thiago de Mello teve um e Olga Savary um. Estavam presentes 18 acadêmicos e 19 votaram por carta.

O presidente da academia, Geraldo Cavalcante, deu as boas-vindas ao novo integrante da ABL. “Ele é um querido por sua dedicação e lucidez e pela argúcia com que acompanha a vida social e econômica do Brasil. Estamos contentes em recebê-lo”, disse.

Zuenir recebe outros imortais após as eleições - Foto: Cristina Boeckel/G1
Zuenir recebe outros imortais após as eleições – Foto: Cristina Boeckel/G1

Zuenir não escondia a alegria com o resultado: “Eu tive um impacto positivo. Por mais que se espere, é diferente quando você recebe a notícia. Demorei a me candidatar porque, nas outras, meus amigos se candidataram e eu achei que eles mereciam mais do que eu. A grande votação é uma acolhida, pois o número é expressivo, uma grande responsabilidade. Este momento representa uma consagração dos pares. Uma instituição como a Academia Brasileira de Letras, secular, com a tradição, e que se renova sem romper com a tradição”.

Ele falou ainda sobre o fato de suceder Suassuna. “Pretendo frequentar a ABL o máximo possível, pois é um convívio amistoso e agradável. Suceder Suassuna é uma emoção especial. Dedico essa vitória a Zélia Suassuna. Antes de ser internado, o Suassuna falou para o Gerson Camarotti, grande amigo dele, que pretendia votar em mim, mesmo sem votar gá muitos anos. A academia tem uma tradição de jornalistas. Espero não decepcionar”, afirmou.

Vida e obra

Bacharel e licenciado em Letras Neolatinas, Zuenir Ventura é jornalista, ex-professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Escola Superior de Desenho Industrial, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mineiro de Além Paraíba, ele é colunista do jornal O Globo e ingressou no jornalismo como arquivista, em 1956. Nos anos 1960/61 conquistou bolsa de estudos para o Centro de Formação dos Jornalistas de Paris. De 1963 a 1969, exerceu vários cargos em diversos veículos: foi editor internacional do Correio da Manhã, diretor de Redação da revista Fatos & Fotos, chefe de Reportagem da revista O Cruzeiro, editor-chefe da sucursal-Rio da revista Visão-Rio.

No fim de 1969, realizou para a Editora Abril uma série de 12 reportagens sobre “Os anos 60 – a década que mudou tudo”, posteriormente publicada em livro. Em 1971, voltou para a revista Visão, permanecendo como chefe de Redação da sucursal-Rio até 1977, quando se transferiu para a revista Veja, exercendo o mesmo cargo. Em 1981, transferiu-se para a revista IstoÉ, como diretor da sucursal. Em 1985, foi convidado a reformular a revista Domingo, do Jornal do Brasil, onde ocupou depois outras funções de chefia.

Em 1988, Zuenir Ventura lançou o livro 1968 – o ano que não terminou, cujas 48 edições já venderam mais de 400 mil exemplares. O livro serviu também de inspiração para a minissérie “Os anos rebeldes”, produzida pela TV Globo. O capítulo “Um herói solitário” inspirou o filme O homem que disse não, que o cineasta Olivier Horn realizou para a televisão francesa.

Em 1989, publicou no Jornal do Brasil a série de reportagens “O Acre de Chico Mendes”, que lhe valeu o Prêmio Esso de Jornalismo e o Prêmio Vladimir Herzog. Em 1994, lançou Cidade partida, um livro-reportagem sobre a violência no Rio de Janeiro, traduzido na Itália, com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de Reportagem. Em fins de 1998, publicou O Rio de J. Carlos e Inveja – Mal Secreto, que foi lançado depois em Portugal e na Itália. Já vendeu cerca de 150 mil exemplares.

Em 2003, lançou Chico Mendes – Crime e Castigo. Seus livros seguintes foram Crônicas de um fim de século e 70/80 Cultura em trânsito – da repressão à abertura, com Heloísa Buarque e Elio Gaspari. No cinema, codirigiu o documentário Um dia qualquer e foi roteirista de outro, Paulinho da Viola: meu tempo é hoje, de Izabel Jaguaribe. Suas obras mais recentes são Minhas histórias dos outros, 1968 – o que fizemos de nós e Conversa sobre o tempo, com Luis Fernando Verissimo. Seu livro mais recente é o romance Sagrada Família.

Em 2008, Zuenir Ventura recebeu da ONU um troféu especial por ter sido um dos cinco jornalistas que “mais contribuíram para a defesa dos direitos humanos no país nos últimos 30 anos”. Em 2010, foi eleito “O jornalista do ano” pela Associação dos Correspondentes Estrangeiros. Ao comentar sua série de reportagens sobre Chico Mendes e a Amazônia, The New York Review of Books classificou o autor como “um dos maiores jornalistas do Brasil”. A revista inglesa The Economist definiu-o como “um dos jornalistas que melhor observam o Brasil”.

*Informações do G1 Rio e Guia da TV Brasileira

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