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Opinião: Amar a cidade

Por Aloísio da Franca Rocha Filho*

Não se ama uma cidade apenas porque aí se nasce. O amor à pessoa, natural, precede o amor à cidade. O amor à cidade é um sentimento mais tardio. Chega com a idade da razão, a percepção, a inteligência e o sentimento do indivíduo antenados à vida prosaica urbana que estimula gostos por lugares naturais e espaços urbanos, o que neles se constroem ou não para o convívio social. Por isso, o amor à cidade jamais escapou dos laços afetivos dos indivíduos. Suas confissões públicas lotam a literatura, as artes, a filosofia, a arquitetura, a canção. O exemplo maior procede mais uma vez da Antiguidade e de duas cidades ícones e rivais: Atenas e Esparta.

Este tema – o amor à cidade – recentemente alimentou-se de uma boa nova que lhe deu asas. O Rio de Janeiro.  Primeira cidade do mundo a receber o título de  Patrimônio Artístico Mundial como Paisagem  Cultural, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Nada mais justo para o Rio, para os cariocas, e por que não para nós brasileiros que, de há muito, nos deleitamos com o Rio, ele mesmo uma paisagem, incrustado em belas paisagens. Talvez até um reconhecimento tardio desta obra de Deus que a mão do carioca ora conserva e melhora ora agride e mexe para baixo a sua beleza. Coisas próprias do ser humano atuando como uma “espécie de deus protético” (Freud),que deambula daqui para ali com suas criações na busca da felicidade, mas parece hoje não se sentir feliz com tal semelhança.

O Rio de Janeiro continua lindo. Com todos os seus problemas. A sua recente descoberta pelo olho mundial pós-moderno confirma o que o Rio fotografou de há muito no olho da tradição e entre nós: beleza e sedução.

Mas um pedaço da Bahia, o Centro Histórico de Salvador e nele encravado o Pelourinho, também  recebeu em 1985, o honroso titulo de Patrimônio Artístico e Cultural da Humanidade da mesma UNESCO. Menos pela passagem do dedo de Deus por ali (embora não Lhe faltem invocações),mas mais pelo reconhecimento do seu valioso acervo arquitetônico historicamente marcado pelos trabalhos do senhor e do escravo, do artesão e do homem livre, enfim, da carne na pedra.

Seus frutos: igrejas e conventos, sobrados e monumentos, praças e fontes, ruas e calçadas, calhas e esgotos. Ali circulavam homens, mulheres e crianças para seus trabalhos e lazeres, o comércio do suprimento e reposição de mercadorias, o sobe e desce das gentes da cidade alta para a baixa. O Centro Histórico e o Pelourinho eram um lugar de uso, de concentração de serviços, de equipamentos públicos  e também de odores.

No passado recente projetos equivocados contribuíram para evanescer essa mobilidade. Hoje desértico, perigoso, um oásis da droga e do crime. Ao turista resta a foto-lembrança de um espaço público em decomposição. Contudo, lá sopra o que mais sutil se move e se reinventa: o vento fresco, colonial e  barroco da acrópole na cara dos passantes a rodopiar, ainda, as saias das mulheres baianas e das turistas.

Vivemos então em uma cidade também porque a amamos, e desejamos continuar neste território.  A perda de um espaço público dessa magnitude cultural debilita a sociabilidade, rebaixa a nossa auto-estima, cava um lugar de dor no nosso corpo.

Tanto mais quando uma cidade, ou parte dela, ganha foros de Patrimônio Cultural da Humanidade. Aí ela dá um salto. Ela que nunca foi só de seus filhos – muitos ainda pensam assim- mas, de todos os que a pretendem, se alarga.  Neste sentido, ela não se globaliza, se mundializa. Sem amor uma cidade não vive. Nem resiste.

Os atuais poderes público municipal e estadual conservam  este patrimônio da Humanidade na Bahia? Os futuros o revitalizarão?

Amar aqui é verbo transitivo. Amar a cidade. No plano da língua estamos salvos porque carece totalmente poder ao poder político a metamorfose do transitivo em intransitivo. Mas este poder político pode deixar morrer parte do Centro Histórico de Salvador (Pelourinho), espaço significativo da cidade e aqui objeto do transitivo amar. Se o poder político chegar até lá dolorosamente perguntaremos: amar o quê?

*Aloísio da Franca Rocha Filho é jornalista e diretor da ABI – Associação Bahiana de Imprensa. Originalmente publicado no Jornal A Tarde.

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ABI BAHIANA Notícias

ABI discute desafios da implantação do Memorial da Resistência

O ciclo “Três novos endereços de Cultura” está de volta. Dessa vez, a Associação Bahiana de Imprensa (ABI) vai realizar um debate para traçar reflexões sobre as dificuldades na implantação do projeto “Memorial da Resistência Carlos Marighella”. O evento, que será realizado no dia 12 de agosto, às 9h30, trará à sede da ABI o arquiteto Pasqualino Magnavita, a professora Maria Teresa Navarro de Brito Matos e o advogado Carlos Augusto Marighella, filho do militante Carlos Marighella (1911-1969) – um dos mais conhecidos opositores ao regime militar e defensor das liberdades democráticas no país.

O projeto para a criação do Memorial da Resistência é uma bandeira levantada há anos por diversos movimentos sociais e ganhou força em 2011, quando, por iniciativa de Carlos Augusto Marighella, foi encaminhado o pedido ao Governo do Estado da Bahia. Nos casarões de números 28 e 30 da Rua João de Deus, no Pelourinho, o governo estadual pretende implantar até o final de 2014 o Memorial da Resistência Carlos Marighella. O espaço vai guardar e expor documentos e obras daqueles que combateram a opressão na Bahia, desde lutas como a Revolta dos Malês (1835) e a Sabinada (1837-38) até embates mais recentes, com destaque para a oposição à Ditadura Militar.

Debater a situação em que se encontra o projeto e buscar meios para torná-lo realidade é o propósito do debate que será promovido pela ABI. “A ABI escolheu a data de 12 de agosto porque nesse dia, em 1798, os sediciosos contra o jugo português, contra a escravidão e a favor de um Brasil independente e justo com o seu povo panfletaram as principais vias da Cidade do Salvador com boletins em que expunham as principais reivindicações do movimento. A data nos pareceu apropriada para debater o projeto do Memorial de Resistência”, explica o presidente da entidade, Walter Pinheiro.

A discussão sobre o Memorial da Resistência dá continuidade às reflexões propostas pela ABI, com o apoio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB). A primeira edição do evento abordou a situação da primeira sede do governo primaz da Igreja Católica, o Palácio Arquiepiscopal de Salvador, que passa por intenso processo de arruinamento. O debate iniciado no dia 22 de abril, com a palestra do arquiteto e professor Francisco Senna, foi retomado no dia 29 de maio pelo arcebispo de São Salvador da Bahia e primaz do Brasil, dom Murilo Krieger. No último dia 29, a Arquidiocese de São Salvador da Bahia e a Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) na Bahia apresentaram o projeto de restauração do edifício para implantação do primeiro Centro de Referência da História da Igreja Católica do Brasil.

O que: Debate sobre o projeto do Memorial da Resistência

Quando: Dia 12 de agosto, às 9h30

Onde: Auditório Samuel Celestino da Associação Bahiana de Imprensa (8º andar do Edifício Ranulpho Oliveira – Rua Guedes de Brito, 01, esquina da Praça da Sé)

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Notícias

Comunidade do Centro Histórico discute sustentabilidade social do Pelourinho

“Preservar o Pelô é um gesto de amor” foi a frase que estampou o tapete vermelho estendido da Cantina da Lua até a entrada do Museu Eugênio Teixeira Leal, onde o Projeto Cultural Cantina da Lua, a Associação dos Comerciantes do Centro Histórico de Salvador (Acopelô) e a Sociedade protetora dos Desvalidos e o Montepio dos Artistas promoveram uma reunião de urgência, para discutir a sustentabilidade social do Pelourinho. Na noite desta quarta-feira (30), o encontro, que abordou temas como segurança, mobilidade e combate ao uso de drogas, reuniu moradores, representantes de diversos movimentos sociais, órgãos da administração pública nos âmbitos estadual e municipal, além de outras entidades comprometidas com a revitalização da área.

Tapete estendido na rua da Cantina da Lua exorta comunidade a amar o Pelourinho - Foto: Joseanne Guedes/ABI
Tapete estendido na rua da Cantina da Lua exorta comunidade a amar o Pelourinho – Foto: Joseanne Guedes/ABI

O processo de expansão e ocupação territorial da cidade criou novos bairros, provocando o fenômeno de descentralização e perda de qualidade urbana no Centro Antigo, principalmente a degradação do Centro Histórico, que sofre com o encolhimento dos espaços econômicos. O resultado é um Pelourinho em estado de abandono e comerciantes locais com sérias dificuldades financeiras, moradores e visitantes com seu direito de ir e vir cassado pela insegurança. Apesar de se mostrar um ambiente com um fluxo razoável de pessoas nos períodos de alta estação, os efeitos das políticas públicas adotadas no local não se mostraram suficientes para manter um padrão mínimo de consumo e a consecutiva autossustentabilidade do “Pelô”.

A partir do debate dessas questões, será constituída uma comissão encarregada de elaborar um documento, para cobrar das instituições uma participação mais ativa nas ações sociais voltadas para a área. Segundo o coordenador do Projeto Cultural Cantina da Lua e dirigente do Sindicato de Hotéis, Bares e Restaurantes, Clarindo Silva, é preciso implementar ações concretas para manter o Pelourinho vivo e ativo.

“Os problemas do Pelourinho vão muito além das obras de preservação, iluminação e requalificação de casarões e monumentos. Eu vou pessoalmente, de porta em porta, entregar os convites das reuniões e fiquei muito feliz com a representatividade desta, porque as pessoas estão descrentes com a revitalização do Centro Histórico. Elas não acreditam que as mudanças prometidas sejam possíveis, mas juntos podemos conseguir”, afirma Silva, que está no Terreiro de Jesus há mais de 60 anos lutando pela preservação do Pelourinho.

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Drogas

Pelas ruas do Pelourinho e em seu entorno, é comum encontrar jovens com idade entre 7 a 14 anos envolvidos com o uso ou tráfico de drogas, furtos e prostituição. Um dos precursores das ações em redução de danos na capital baiana, o médico psicanalista Tarcísio de Andrade coordena o programa da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Para ele, um dos principais obstáculos é a falta de comprometimento da gestão pública com o atendimento eficaz ao usuário. “Não existe uma política do Estado nem do município para que haja um cuidado com os usuários de drogas. No CAPSad Gregório de Matos [Centro de Atendimento Psicossocial para Álcool e Drogas], tentamos fazer nosso papel, mas a descontinuidade administrativa prejudica o trabalho. Nesta gestão municipal, o número de profissionais para o atendimento dessas pessoas encolheu”.

Reunião teve expressiva participação de instituições comprometidas com a preservação do Pelourinho - Foto: Joseanne Guedes/ABI
Reunião teve expressiva participação de instituições comprometidas com a preservação do Pelourinho – Foto: Joseanne Guedes/ABI

“Frequento esse local desde a época colegial e, para mim, é dignificante participar de uma reunião para debater a área, mas eu fico triste em ver a situação difícil que encontramos aqui. Recolhi um jovem usuário de crack e depois de horas ele já estava nas ruas novamente. Essas crianças precisam de tratamento, porque não são criminosas, estão doentes. O policiamento nas ruas foi ampliado, mas o poder policial sozinho não pode muito”, afirma o comandante do 18º Batalhão da Polícia Militar da Bahia, tenente-coronel Valter Menezes.

Participaram da reunião representantes das Secretarias de Segurança Pública, Saúde, Cultura e Turismo, a Fundação Gregório de Matos, Ministério Público, Delegacia de Proteção ao Turista, Cedeca, Abrasel – Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, Sindicato dos Guias de Turistas, Associação dos Taxistas, Conselho de Segurança do Centro Histórico, CONDER, IPAC, Centro de Culturas Populares e Identitárias, as Associações dos Moradores do Centro Histórico e dos Barraqueiros do Pelourinho e do Terreiro de Jesus, Associação dos Vendedores Ambulantes e outras entidades preocupadas com o Centro Histórico.

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Copa revela esperança e descrença na revitalização do Centro Histórico

Ao som de “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, cantada a cappella pelas ruas do Centro Histórico de Salvador, a torcida holandesa encerrou a participação da Arena Fonte Nova na Copa do Mundo FIFA 2014. Desde a primeira fase do mundial, o Pelourinho e entorno se consolidaram como reduto de animados torcedores, que levaram um colorido especial à região tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e reconhecida pela Unesco como Patrimônio da Humanidade. A bem-vinda invasão estrangeira foi responsável pelo fortalecimento do turismo no período e sinalizou o potencial de crescimento do setor. Naqueles que lutam pela efetivação do Plano de Reabilitação do Centro Antigo, a ocupação da área representa a esperança de reverter o processo de esvaziamento habitacional, além da possibilidade de revitalizar o comércio, qualificar os espaços culturais e requalificar a infraestrutura, para que também os baianos passem a valorizar o espaço.

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Dados do Fórum de Operadores Hoteleiros (FOHB) revelam que a ocupação hoteleira nas cidades-sede dos jogos foi de cerca de 90% nos dias de jogos e na véspera deles, sendo que Salvador foi responsável por um dos maiores índices. Sem dúvida, os jogos na Arena Fonte Nova trouxeram brasileiros e turistas de diversas nacionalidades e ajudaram a incrementar a economia local, que, nos últimos sete anos, perdeu cerca de 70 estabelecimentos comerciais. De acordo com a Secretaria de Turismo do Estado da Bahia (Setur), além da grande movimentação nos hotéis, cerca de 70 mil turistas estrangeiros frequentaram bares, restaurantes, lojas e prestadores de serviço.

Clarindo Silva, proprietário da Cantina da Lua/Foto: Joseanne Guedes/ABI
Clarindo Silva, proprietário da Cantina da Lua – Foto: Joseanne Guedes/ABI

O diretor do Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de Salvador e Litoral Norte, Clarindo Silva (72), acredita no legado da Copa por causa da grande projeção da imagem do Brasil para o mundo. No Terreiro de Jesus há mais de 60 anos, ele é proprietário do Bar e Restaurante Cantina da Lua, ponto de referência quando se trata da luta pela preservação do Pelourinho. “Nós temos uma carga tributária muito alta e ainda temos que lidar com a sazonalidade. Trabalhamos no verão para pagar as dívidas do inverno. Eu já tive 49 funcionários, mas fui obrigado a fechar o primeiro andar e dispensar parte deles. Hoje, conto com 14 fixos e cinco temporários. Mas estamos em um momento de oxigenação. Com a Copa e a promoção do “São João no Pelô”, registramos um crescimento de 20% no movimento. Antes da ocupação pelos turistas, o Pelourinho estava abandonado, desprezado”.

Mas, a esperança pode facilmente se transformar em frustração, caso não sejam implantadas medidas para reverter a situação de abandono da área. O Centro Histórico, que já foi o principal ponto de efervescência cultural da cidade, hoje é desértico, perigoso, um oásis da droga e do crime. Um olhar mais atento sobre as ruas não deixa escapar a degradação de monumentos históricos, cujos degraus são utilizados como camas por pessoas em situação de rua, ou a transformação das praças em pontos comerciais pelos vendedores ambulantes. Ao que parece, falta ainda decisão política e consciência de valorização dos bens históricos por parte da população local.

Enquanto os turistas promoviam a festa, pessoas em situação de rua pintavam outra paisagem/Foto: Joseanne Guedes/ABI
Enquanto os turistas promoviam a festa, pessoas em situação de rua pintavam outra paisagem – Foto: Joseanne Guedes/ABI

Uma das causas desse abandono, explica o antropólogo Roberto Albergaria, se deve à cultura de valorização do novo e do externo. “A Bahia é o 6º destino turístico do Brasil. Mas, nós estamos acostumados a ver o lado negativo e não imaginamos o impacto que aquele espaço causa no turista, tanto pelo caráter histórico quanto pela ambiência popular. A Barra, onde foi organizado a Fan Fest da FIFA, pode ser qualquer lugar da Terra. O Pelourinho é único. Sua estrutura cênica é conhecida em todo o mundo, é a imagem de marca da Bahia. Mas, não prestigiamos o que é nosso. Sempre valorizamos o outro lado do mar. O baiano quer a modernagem, por isso a cidade antiga tem decaído”.

Clarindo Silva enfatiza que os baianos não vêm ao Centro Histórico, exceto em grandes eventos. Para ele, a cidade precisa adotar o Pelourinho e encará-lo como uma joia rara a ser lapidada. “Existe um estigma que coloca o Pelourinho como lugar de prostituição ou de criminalidade, mas, na verdade, é hoje uma das áreas mais bem policiadas da cidade. Mesmo com toda segurança, eu tenho o cuidado de reconhecer que não se pode andar 50m sem ser abordado por algum pedinte e isso tanto assusta quanto incomoda. Isso revela um grave problema social que precisamos enfrentar. Nossa juventude está sendo dizimada pelas drogas, pelo craque. Logo depois da Copa, vamos fazer um movimento para trazer as secretarias de ação social do estado e do município, representantes de entidades da sociedade civil, além de órgãos como o Conselho Tutelar e o Juizado de Menores, para uma ação conjunta que vai ajudar a fazer do Pelourinho novamente a alma da cidade”, revela o dirigente.

Alberto Prado destaca o bom serviço como o diferencial na captação de clientes/Foto: Joseanne Guedes
Alberto Prado destaca o bom serviço como o diferencial na captação de clientes – Foto: Joseanne Guedes/ABI

Para Alberto Prado (58), proprietário do Café Gourmet, um tradicional restaurante situado na Praça da Sé, oferecer bons serviços é um passo importante no movimento de revitalização da área. Nascido em uma família de comerciantes do Centro Histórico, ele está no local há quase 40 anos. Montou uma livraria, depois, uma tabacaria. Com a proibição do fumo em locais coletivos, aliado ao talento gastronômico, abriu o restaurante, que conquistou prestígio através do marketing boca a boca. “Quem vem à Bahia tem que conhecer o Centro Histórico, que é o nosso coração. Eu atendo muito bem a minha clientela fixa, composta principalmente pelos trabalhadores do entorno, mas, com a Copa, o movimento dobrou. A grande queixa dos clientes é sobre o estacionamento e a questão da abordagem, fruto do problema social que a cidade inteira atravessa”, afirma o empresário que é conhecido como Beto entre os clientes.

De acordo com o Relações Públicas de uma agência de viagens que funciona no Shopping do Pelô, Jorge Oliveira (36), o principal problema da região continua sendo a falta de segurança. Ele questiona o poder público e descrê do projeto de revitalização. “Em um evento como a Copa, o governo oferece um serviço que em dias normais é quase inexistente. O aquecimento do comércio e a ocupação do Pelourinho pelos nativos e visitantes dependem de segurança. Hoje, contamos com ruas desertas pela escassez de moradores”.

Já para Mab Boaventura, recepcionista do Bahia Café Hotel, situado na Praça da Sé, o movimento do comércio é prejudicado pela carência de serviços. “Nesse período, o número de hóspedes foi acima do esperado. Estivemos com 100% de ocupação desde o início do mundial. Mas, eles reclamam da baixa oferta de alimentos no local. Há poucos restaurantes em pleno funcionamento. Por outro lado, o público que frequenta os estádios quase não compra. Ele vem para farrear”, afirma.

Reduto de irreverentes torcidas

Alheia aos problemas da cidade, a torcida holandesa coloriu as ruas do Centro, no encerramento da participação da Arena Fonte Nova na Copa de 2014 - Foto: Joseanne Guedes/ABI
Alheia aos problemas da cidade, a torcida holandesa coloriu as ruas do Centro, no encerramento da participação da Arena Fonte Nova na Copa de 2014 – Foto: Joseanne Guedes/ABI

A capital baiana está no topo do ranking das prediletas entre os turistas que visitam as cidades-sede da Copa do Mundo. As partidas realizadas em Salvador trouxeram, primeiro, as torcidas da Espanha, Holanda, Alemanha e Portugal. Depois, Suíça, França, Bósnia e Irã. Na primeira semana de julho, a capital registrou um expressivo número de visitantes dos Estados Unidos, Bélgica, Costa Rica e o retorno da Holanda. Esta última seleção arrastou para cá aproximadamente sete mil torcedores. Os costa-riquenhos até apareceram no Pelourinho antes da partida do dia 5 de julho (sábado) contra a Holanda, mas foram engolidos pela onda laranja proporcionada pela “Orange Fans”, na última invasão holandesa à Salvador durante a Copa. O sucesso dos holandeses foi tão grande que a Cantina da Lua criou duas bebidas em sua homenagem: “nederinha” e “nederoska”, produzidas com laranja, ao invés do limão usado na tradicional caipirinha.

O cônsul honorário da Holanda em Salvador, Egbert Hein Bloemsma, explica a opção pelo Pelourinho. “Fazer festas em todas as copas é uma tradição holandesa. Em Salvador, nós tivemos outras opções de locais, mas preferimos o Terreiro de Jesus não apenas pelo critério da proximidade com o estádio, mas também pela oportunidade de conhecer o belíssimo conjunto arquitetônico colonial conhecido em todo mundo. Nesta edição, só não conseguimos promover a marcha em São Paulo, por causa da segurança pública, um problema que não tivemos em Salvador porque nos foi oferecida toda a estrutura necessária”.

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Os torcedores foram unânimes quando questionados sobre a receptividade e alegria do povo baiano. O agente penitenciário belga Eusebio Roggen (44), morador de Hasselt, se apaixonou pela atmosfera do Pelourinho. “Vim com alguns amigos porque era o ponto de encontro da torcida, mas não esperava uma gente tão amigável e um clima tão bom. Fiquei muito seguro e pretendo ficar no Brasil para acompanhar a final”. Outro belga que se rendeu aos encantos do local foi Jacques Gossuin (44), da cidade de Binche, que reúne no Carnaval cerca de trinta e dois mil moradores, em uma celebração que começou na Idade Média. “Eu adorei a comida, a alegria das pessoas, as praias… Voltarei para a Bélgica daqui a 25 dias, mas retorno para os jogos de 2016”.

Eusebio, da Bélgica, e Maria, dos EUA, deixam claro que o confronto é apenas detro do estádio - Foto: Joseanne Guedes/ABI
Eusebio, da Bélgica, e Maria, dos EUA, deixam claro que o confronto é apenas dentro do estádio – Foto: Joseanne Guedes/ABI

Com os estadunidenses não foi diferente. Famílias inteiras circularam pelas ruas do Pelourinho, deslumbradas com a paisagem proporcionada por um dos maiores conjuntos arquitetônicos da América Latina. Moradora de Washington, D.C., Andrea, 25 anos, veio assistir ao jogo com os pais e aproveitou para conhecer o patrimônio histórico, assim como Maria, 24 anos, que mora no Texas e desembarcou em Salvador com um grupo de amigos, todos hospedados em um hotel no bairro da Pituba.

O subsecretário de Turismo da Bahia, Benedito Braga, destaca o trabalho realizado com todos os consulados para montar os receptivos. “Nós fazemos um trabalho de captação e promoção do destino Bahia e previmos a grande movimentação durante a Copa. Fizemos reuniões com a Secretaria de Segurança Pública para dar conforto aos torcedores que visitaram a área, que precisa de uma ação cojunta para contornar os problemas sociais”. Segundo ele, no prazo de um mês, será lançado um projeto de formação de guias mirins de turismo, para capacitar crianças carentes e ajudar a mudar a realidade local.

Mudança essa que passa pelo Plano de Reabilitação do Centro Antigo de Salvador, que está sendo executado pela Diretoria do Centro Antigo de Salvador (Dircas/Conder), para preservar e valorizar o patrimônio cultural, impulsionar as atividades econômicas e culturais da região, além de propiciar condições para a sua sustentabilidade. Uma das promessas do plano é o incentivo a moradias, com a esperança de que as habitações possam ajudar a resolver problemas como a economia local e a segurança. Nesse sentido, a nova perspectiva indica possibilidade de requalificação discutida desde os anos 80.

Segundo a diretora do Centro Antigo de Salvador, Beatriz Lima, em janeiro deste ano foram entregues 17 casarões para moradia. “Diante do processo de esvaziamento ocorrido nas últimas décadas na região, o plano prevê a recuperação dos imóveis em ruínas, subutilizados e terrenos vazios que não estejam cumprindo a função social da propriedade. 41 unidades foram destinadas aos servidores públicos estaduais, que passam a pagar um valor mensal, descontado em folha, pelo uso, e a garantia de preferência caso o imóvel seja colocado à venda pela Conder. Outras 63 novas moradias estão sendo utilizadas por antigos moradores da região. Precisamos habitar a área”, enfatiza a diretora.

Contudo, há mais de dez anos, o governo promete a finalização da 7ª Etapa, área que vem sendo restaurada para habitação. Na busca pelas razões para o tão esperado projeto de revitalização caminhar a passos lentos, o que se encontra é um horizonte misto de expectativa e readequação da gestão pública. Enquanto ações de reparo estão sendo postas em prática, a requalificação total da região, celeiro do nascedouro da cidade de Salvador, patrimônio da humanidade, ainda se apega a um evento pontual como tábua de salvação.

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