“A cidade precisa ser lida, tanto pelo que ela tem de poético, quanto pelo que ela tem de feio, ruim e errado”, defendeu o jornalista e pesquisador Jorge Ramos, ao destacar, na noite de ontem (27), a importância dos cronistas e sua relação com a cidade. Na condição de mediador, Ramos brindou a audiência do II Simpósio Baiano de Jornalismo e Literatura com um vasto conhecimento sobre os maiores articulistas da Bahia, principalmente nas áreas da cultura e patrimônio histórico. A última mesa desta edição do evento, fruto de uma parceria entre a Associação Bahiana de Imprensa (ABI) e a Academia de Letras da Bahia (ALB), recebeu o arquiteto Paulo Ormindo, o jornalista Jolivaldo Freitas e o produtor cultural Dimitri Ganzelevitch. Os debatedores abordaram o tema “Cronistas e articulistas: um olhar crítico sobre a cidade do Salvador” (Assista aqui).
O gênero da crônica é considerado como aquele que melhor transita entre o jornalismo e a literatura. Machado de Assis, José de Alencar, João do Rio; muitos são os exemplos de escritores que iniciam como jornalistas – ou vice-versa – e que flertam com a outra área por meio desse gênero. “O cronista nada mais é que um registrador. Com seu olhar duro, poético, ele transpõe para uma tirinha dentro do jornal a realidade que ele vê e a crítica que ele faz. É uma leitura absolutamente prazerosa”, afirma Jorge Ramos, diretor do Museu Casa de Ruy Barbosa, um dos equipamentos culturais da ABI.
A discussão girou em torno do espaço para a crônica nos jornais hoje e o atual estado da cidade. Jorge Ramos recordou que a ligação do cronista com as cidades é um caso comum na história desse gênero.
“A crônica sempre foi uma parte muito importante do jornalismo brasileiro”, afirma o jornalista Jolivaldo Freitas. Ele diz ter vivenciado algo do auge da crônica baiana e recorda momentos em que se podia ler nos jornais os trabalhos de personalidades como Thales de Azevedo, Adroaldo Ribeiro Costa, Odorico Tavares, José Calazans, Jorge Amado.
Jolivaldo atribui o começo de sua paixão pela crônica à coluna “A cidade que não dorme”, publicada no jornal Tribuna da Bahia pelo poeta baiano Jehová de Carvalho. “Essa coluna me instigava porque tinha uma linguagem muito mais solta do que o que se lia no A Tarde”, diz o jornalista, que começou no jornal aos 17 anos. “Ele [Jehová] transformava o noticiário do próprio jornal, principalmente o noticiário policial, em boas crônicas”. Jolivaldo afirma que as crônicas do poeta eram um espelho do que se via na cidade, principalmente a vida noturna.
Afinado com o estilo livre, poético e solto das crônicas, Jolivaldo começou suas primeiras explorações pelo gênero. “Eu queria escrever de forma mais solta, até hoje minhas crônicas têm mais o viés do bom humor”. Mais do que um retrato divertido da cidade, o jornalista afirma que as crônicas são também “a voz dos jornais”, onde é possível que aquele veículo se posicione. “A questão da crônica é tão interessante que na primeira quadra do século passado as ‘porradas’ e agressões se davam contra os jornalistas que se posicionavam e criticavam alguém”, afirma.
Mas ele também alerta para a diminuição dessas figuras nos jornais, que buscavam incomodar e suscitar debates através da ironia e do cinismo. “A questão é que hoje não tem espaço porque o diretor de criação e o editor-chefe não estão mais voltados para cuidar da estética, do conteúdo. Ele está também tentando manter o jornal economicamente”, completa. “O jornal não tem mais espaço para eles”.
Selva de concreto
Paulo Ormindo, por sua vez, transitou da cidade à crônica. Arquiteto de formação, foi servidor no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e pesquisador na área de conservação de monumentos. Essa atuação vai definir muito das temáticas que ele aborda em suas crônicas, publicadas no jornal A Tarde, onde busca pensar criticamente a cidade.
E suas críticas são muitas. Paulo recorda os problemas estruturais do Centro Histórico, onde ele afirma que a Defesa Civil identificou mais de 1.400 imóveis em ruínas; a divisão social imposta fisicamente pelo metrô, que separa a zona da orla do miolo da cidade; o ferry boat que ele avalia como mal administrado. Acima de tudo, Paulo critica a transformação de Salvador em uma “selva de concreto”. “A indústria imobiliária na Bahia vive em função de vender uma vista para a Baía de Todos os Santos”, avalia.
O arquiteto lamenta o atual estado do lugar. Ele, que já visitou diversas cidades ao redor do mundo, vê Salvador não apenas como um lugar pobre, mas também decadente. “O único atrativo que persiste na Bahia é o povo baiano. É essa magia do povo baiano, a cultura popular”, afirma.
“Eu acho que a função do jornalista é criar uma opinião pública que possa pressionar os governantes, os investidores. Nesse sentido, eu acho que o jornalismo tem uma função importantíssima, agora nós temos que ter uma função crítica dos problemas da cidade”, afirma. Ele conta que suas denúncias no jornal ainda não chamaram a atenção dos gestores da cidade e censura a falta de diálogo com a população. Ainda assim, o arquiteto relata que sua carreira nos jornais o satisfez e lhe possibilitou não apenas ter um contato mais próximo com seus leitores – “aprendo muito com eles” – como também lançar um livro seu de crônicas, o “Navegação Errante: Memórias de Viagem”, publicado neste ano.
Apesar de terem diminuído, os cronistas e articulistas não sumiram completamente. Dimitri Ganzelevitch, que além de marchand e colecionador de arte continua a escrever, que o diga. O fotógrafo francês estabeleceu sua relação com Salvador em 1975 e pôde observar as mudanças ocorridas ao longo dos anos, chegando a fazer de sua casa um museu de arte. Seu diagnóstico hoje não é otimista. “A cidade inteira parece um imenso balcão de negócios. Está tudo à venda, até os artigos do Estado”, reclama o morador do bairro de Santo Antônio.
Uma importante voz em defesa do patrimônio histórico cultural baiano, ele lista os problemas que vê pelas ruas. O esvaziamento do Centro da cidade, o enfraquecimento do comércio de rua em detrimento dos grandes shoppings, a perda de espaços culturais, como os cinemas de rua, representam, para Dimitri, a perda da dimensão humana e da estética da cidade. “Do lado da Barra até Itapuã é tudo uma anarquia arquitetônica. É tudo horroroso, é feio. Onde está a Bahia cantada pelos poetas? Eu não vejo mais e amanhã vai ser muito pior”, pressagia o editor do Blog do Dimitri.
“Eu moro há praticamente meio século no Centro Histórico e constato que o Estado não está assumindo suas obrigações apesar das honrarias da Unesco”, denuncia o colunista, recordando que diversos espaços do Centro são tombados e devem ser protegidos por força de lei. Dimitri recorda ainda a disputa envolvendo o prédio da Quinta do Tanque. “Escandaloso” foi o adjetivo usado por ele para descrever o caso. “Essa gente é patriota? Porque se trata também de patriotismo. Não tem orgulho de sua terra? Simplesmente vão despejar os arquivos públicos da primeira capital do Brasil”, lamentou o fotógrafo. “Se queremos uma cidade melhor temos que nos opor a muitas coisas que estão acontecendo de errado”, completa.
O II Simpósio Baiano de Jornalismo e Literatura aconteceu nos dias 25, 26 e 27 de janeiro, como resultado de uma parceria da ABI com a ALB. Confira as coberturas das mesas anteriores aqui e aqui.
Assista ao encerramento do II Simpósio: