Um estudo publicado pela revista Journalism: Theory, Critique and Practice traz uma importante análise sobre como o regime político de um país influencia nas ocorrências violentas contras profissionais da imprensa. De acordo com o artigo “Explicando o assassinato de jornalistas na era contemporânea: a importância de regimes híbridos e variações subnacionais”, com a democracia enfraquecida globalmente nos últimos 25 anos, os autoritários locais se tornaram a principal ameaça aos jornalistas.
“Devemos destacar as contribuições dos jornalistas locais para a prestação de contas em uma democracia e para a proteção de direitos, ao mesmo tempo em que pressionamos os governos nacionais a reverter essa tendência”, defende uma das autoras do estudo, a jornalista e professora Sallie Hughes, em artigo divulgado pelo Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, da Universidade do Texas, em Austin.
“Os autoritários locais se tornaram a principal ameaça aos jornalistas.”
“Nós que trabalhamos como jornalistas ou pesquisadores especializados na América Latina conhecemos bem os perigos que os jornalistas enfrentam em muitos contextos na região”, ressalta Sallie Hughes, docente da Universidade de Miami. A professora lembra que, nos últimos 25 anos, Brasil, México, Colômbia, Guatemala e Honduras ganharam notoriedade por estarem entre os países mais letais do mundo para jornalistas, e que esses países representam tendências globais mais amplas.
Mapeando o perigo
De 1992 a 2016, 1.812 jornalistas foram mortos no trabalho em todo o mundo e a taxa média anual de assassinatos aumentou – de 48 por ano entre 1992 e 2001, para 72 entre 2002 e 2011, finalmente, para 91 entre 2012 e 2016, de acordo com o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) – uma das organizações mais ativas na sistemática documentação dos assassinatos. Hughes e sua parceira de pesquisa, Yulia Vorobyeva, analisaram os dados do CPJ, de forma independente.
“Ao analisar as 1.812 mortes de jornalistas em todo o mundo de 1992 a 2016, encontramos evidências esmagadoras de que um tipo específico de sistema político – muito familiar para latino-americanos e estudiosos da América Latina– era mais letal para jornalistas”, afirma. “Países com regimes políticos “híbridos”, que misturam elementos liberais e “iliberais” (com tendências autoritárias), criam, de longe, o contexto mais perigoso para jornalistas em todo o mundo. Ao mesmo tempo, uma configuração espacial específica da autoridade política dentro desses países, condições políticas locais descritas como autoritarismo subnacional, explicam a lógica dos assassinatos”, explica a pesquisadora.
De acordo com Hughes, os sistemas políticos híbridos territorialmente desiguais apresentam normas no nível nacional que garantem explicitamente a liberdade de imprensa e condenam práticas iliberais. Essas normas nacionais incentivariam os jornalistas, muitos dos quais formados profissionalmente durante os períodos de liberalização política, a monitorar o poder e denunciar abusos. Entretanto, ressalta ela, expor a corrupção, políticas de segurança fracassadas ou outros abusos se torna perigoso quando a prestação de contas é fraca e as autoridades locais têm incentivos para atacar os críticos e silenciá-los.
“O conluio de interesses criminais, comerciais e políticos frequentemente ocorre onde os governos locais, as forças de segurança e as organizações criminosas são pouco contidas. As fortes correlações entre a cobertura desses tópicos e o assassinato de jornalistas em regimes híbridos são uma evidência contundente do perigo que isso cria para os profissionais da imprensa”, alerta.
"(...) os resultados confirmam que democracias com maior responsabilidade eleitoral e proteção de direitos proporcionam maior segurança aos jornalistas. As vidas perdidas nessas democracias ultrapassam medidas quantitativas, assim como todas as mortes. No entanto, o mapeamento mostra que as condições para o jornalismo nas democracias e nos híbridos democráticos variam enormemente e de maneiras que afetam profundamente o desempenho profissional e o bem-estar pessoal dos jornalistas. Ao longo do último quarto de século, a propagação de regimes políticos híbridos ligada à estagnação da liberalização – ou recuo – envolveu uma variação espacial no desempenho das instituições democráticas, incluindo aquelas que apoiam uma imprensa crítica. As conclusões deste estudo e de outros sugerem que os jornalistas às vezes resistem à violação das normas democráticas, e que a resistência traz consequências potencialmente de longo alcance para a política, a governança e os direitos humanos. Estudos em alguns dos países mais perigosos para jornalistas mostram que reportagens reveladoras podem afetar significativamente os resultados das eleições, fornecendo material para a oposição se organizar ou fortalecendo as funções judiciais ou investigativas do Congresso. Um processo de democratização local também pode ocorrer quando as investigações de jornalistas são apoiadas pela mobilização de organizações civis locais ou por partidos da oposição. Assim, salvaguardar jornalistas pode muito bem salvaguardar o liberalismo". ____ Sallie Hughes
O resultado dos estudos traz ao menos dois impactos. 1) Para os acadêmicos, elas oferecem mais suporte para abordar problemas do mundo real com teorias e técnicas multidisciplinares, nesse caso, oriundos da ciência política, da sociologia do jornalismo e da análise socioespacial na geografia. 2) Para formuladores de políticas públicas, defensores da imprensa e organizações governamentais internacionais, eles sugerem redirecionar o discurso e a ação para destacar as contribuições dos jornalistas locais para os direitos humanos e para a prestação de contas em uma democracia. “Ainda que outros jornalistas também corram perigo algumas vezes, são os jornalistas locais que pagam o preço mais alto de forma desproporcional”, conclui a jornalista.
A íntegra do artigo “Explaining the Killing of Journalists in the Contemporary Era: The Importance of Hybrid Regimes and Subnational Variations.” (Explicando o assassinato de jornalistas na era contemporânea: a importância de regimes híbridos e variações subnacionais) pode ser lido aqui: https://doi.org/10.1177/1464884919885588.