Joseanne Guedes e Larissa Costa
Olhar para o aparelho auditivo e de repente começar a falar alto e devagar para ‘fazer o surdo entender’. Encontrar um cego na rua e se dirigir a alguém próximo para intermediar a conversa, ou até mesmo correr para ajudar sem que ele tenha solicitado. Essas pequenas ações cotidianas são bem comuns na abordagem da pessoa com deficiência, mas reforçam ideias capacitistas e preconceituosas. Se na sua cabeça pessoas com deficiência são sinônimo de incapacidade ou desqualificação, já passou da hora de rever seus conceitos. Isso ficou muito claro no debate realizado pela Associação Bahiana de Imprensa (ABI), na noite de ontem (21/09), quando a instituição encerrou a série de lives comemorativas aos seus 91 anos. (Assista aqui)
O quarto evento online que compôs a programação contou com profissionais especializados no tema acessibilidade e marcou o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência. Na mediação, a mesa contou com o jornalista Ednilson Sacramento, pesquisador nas áreas de acessibilidade cultural, direitos humanos, mídia e diversidade. Por causa de problemas técnicos, a posição foi ocupada também pela jornalista Simone Ribeiro, diretora de Divulgação da ABI. “Esperamos que o tema da acessibilidade não se restrinja ao 21 de setembro. Que nossos governantes façam dele uma causa real”, reforçou a dirigente.
“Sinto alegria em estar participando deste momento, aos 91 anos da ABI. E não é pouca coisa trabalhar agregando os interesses da imprensa dos jornalistas e da comunicação como um todo”, parabenizou o jornalista, que já ministrou a “Oficina Pauta Eficiente: como abordar a deficiência na imprensa”, na sede da ABI. O projeto foi uma formação para comunicadores e estudantes de jornalismo sobre como abordar e pautar a deficiência em seu trabalho. Ednilson falou da importância do debate e agradeceu a jornalista Amália Casal, diretora da ABI, por propor a discussão.
A live recebeu como debatedores o superintendente dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Secretaria da Justiça do Estado da Bahia (SJDHDS-BA), Alexandre Baroni, também coordenador da Central de Intérpretes de Libras da Bahia (CILBA); Laiza Rebouças, que é surda, professora de Libras, bacharel em Direito e correspondente jurídica para auxiliar pessoas surdas e com deficiência auditiva; e a pedagoga Luana Rodrigues, coordenadora de Gestão de Projetos da Unidade de Políticas Públicas para Pessoa com Deficiência (UPCD) da Secretaria Municipal de Promoção Social (SEMPRE). A tradução ficou a cargo dos intérpretes de Libras (Língua Brasileira de Sinais) Ronaldo Freitas e Vinícius Silva.
“Nada sobre nós sem nós”
Luana Rodrigues falou sobre o trabalho realizado pela Prefeitura de Salvador através da UPCD. “Quando falamos sobre comunicação acessível, isso perpassa por duas áreas: a Libras e a audiodescrição”. Atualmente, de acordo com Rodrigues, qualquer pessoa que necessite de uma acessibilidade comunicacional humanizada pode contar com a Central de Libras da Bahia, um serviço de intermediação focada na pessoa surda dentro do sistema municipal. As iniciativas são pensadas junto com o Conselho Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiência de Salvador – COMPED. “Não adianta desenvolver políticas públicas sem ouvir as pessoas que compõem a comunidade atingida por elas”, defende a gestora, resgatando o lema “Nada sobre nós sem nós” (Nothing about us without us), lançado pelo ativista de direitos das pessoas com deficiência, Tom Shakespeare, em sua palestra “Entendendo a Deficiência”, durante conferência realizada na Austrália, em 2001.
Apesar de destacar os avanços que a existência da Central de Libras representa, Luana Rodrigues reconheceu que há limites para a atuação da Central, que completará um ano em dezembro próximo. “Nem sempre ter o intérprete é [garantia de] uma comunicação, pois não podemos estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Se o surdo precisa de um serviço público, ele pode não ter intérprete naquele momento. É aí que entra o papel dos servidores municipais que passam por uma capacitação com nossa equipe”, disse.
A coordenadora destacou o trabalho feito durante a pandemia do coronavírus para garantir o acesso à informação por todos. Segundo dados não oficiais divulgados por ela, em Salvador há pelo menos 70 mil surdos usuários da Libras. “Hoje, todas as transmissões do prefeito têm interpretação de Libras, assim como toda a comunicação dentro da SEMPRE. É importante destacar que políticas públicas não surgem da noite para o dia. Precisa de estudo, dedicação, dotação orçamentária. Não podemos contar com dados oficiais, pois o último Censo aconteceu em 2010”, salienta.
Em nível estadual, Alexandre Baroni ressalta a ação pelo passe livre para PCDs e lembra que o acesso à informação é direito constitucional. “A acessibilidade na comunicação não é um projeto de governo, é um direito. Está na lei brasileira de inclusão. Não há como falar de inclusão sem falar da garantia de acesso à comunicação. Esse acesso se dá a partir da garantia de que toda comunicação precisa ter a audiodescrição e o intérprete de libras”.
Baroni comemora a acessibilidade na comunicação digital. “No período da pandemia, tivemos que aprender a fazer essa comunicação. Talvez, um dos maiores pontos a serem comemorados hoje seja a comunicação digital acessível, seja nas lives, nas comunicações oficiais. É isso que estamos fazendo”. Mas ele também criticou o posicionamento da mídia frente à pessoa com deficiência, principalmente na rede aberta. “É preciso convencer a grande mídia do nosso estado de que a informação tem que ser acessível nesse espaço. Temos pontualmente alguns programas acessíveis. Não vemos essa preocupação nos telejornais, nas telenovelas, por exemplo”, observou.
Segundo Baroni, há pelo menos dois caminhos para avançar: “Podemos vir, colaborar e dizer o que a gestão pública está fazendo para que sua comunicação institucional e oficial seja acessível. E a outra coisa é que a gente faça um movimento, considerando toda a comunidade surda e PCDs, de discutir com a grande rede de comunicação no estado da Bahia. A gente só consegue fazer política pública com a comunhão de esforços de toda a sociedade”, lembra Baroni, que usa cadeira de rodas há 30 anos.
“Vejo tudo que acontece dentro da comunidade surda. Não existe empatia para com a comunidade”, lamenta Laiza Rebouças, que é surda e contou com a tradução dos intérpretes para os ouvintes. Para a professora de Libras, a falta de empatia tem efeitos tangíveis na vida dos surdos. “O surdo perde muitos direitos, em várias áreas. Seja na questão do trabalho, seja no divórcio, são muitas informações que o surdo não tem acesso”. Rebouças frisa que ela é bastante procurada para oferecer apoio a essas pessoas, muitas vezes lidando com questões delicadas como violência. Ela é fundadora do JusLibras (@JusLibras), um canal no Instagram com informações para pessoas surdas. Por lá, ela produz conteúdo sobre acessibilidade, Direito e legislação para a comunidade.
Acesso à informação
“Acessibilidade não é só ter uma rampa. Como lidar com a diferença do outro? É uma acessibilidade atitudinal. Não sabemos quais termos utilizar, temos ideias capacitistas”, afirma Luana Rodrigues. Ela contou que já está dentro do planejamento estratégico da UPCD a expansão da acessibilidade. “Queremos dar visibilidade às pessoas que necessitam da audiodescrição, que não é apenas direcionada para a pessoa cega ou com deficiência visual, mas para todo mundo, seja para o autista ou para o deficiente intelectual, para idosos. Todos nós necessitamos de uma comunicação mais acessível, mais objetiva”.
O superintendente Alexandre Baroni concorda. Ele ressalta que a acessibilidade comunicacional não é apenas questão das pessoas com deficiência. “Não podemos dizer que essa questão é algo para PCDs, mas é uma questão que tem a ver com toda a sociedade. A gente não tem nenhuma dúvida de que a comunicação acessível é boa para todo mundo”, complementa.
Para Laiza Rebouças, tudo começa como um esforço de empatia. “Como eu me sinto como pessoa surda? A gente precisa pensar nisso quando vai ver um jornal que não é legendado, ou vai ver uma campanha política com uma legenda muito pequena, ou a janela de intérpretes é muito pequena. Muitos surdos também têm problemas visuais. É necessário que exista um um padrão para que essa informação seja passada da forma correta para o surdo. Existe regra ABNT para janela de interpretação e para a legenda”, adverte.
A professora reclamou da naturalização de ideias capacitistas que trazem ruídos para a comunicação. De acordo com Rebouças, é muito comum que a Libras seja chamada de “linguagem”, quando na verdade ela é uma língua. “O português é a primeira língua dos ouvintes. Mas é a segunda língua do surdo. Nossa primeira língua é a Libras. A lei reconhece a Libras como a língua natural da comunidade surda”, apontou. Laiza também falou do incômodo com o uso do termo “surdo mudo” e referências a pessoas com deficiência como “portador”. “O surdo quer ser chamado apenas como surdo ou pessoa com deficiência auditiva”, afirmou.
Rebouças enalteceu a atuação do Centro de Capacitação de profissionais da Educação e de Atendimento às Pessoas com Surdez – CAS Wilson Lins, onde ela ensina. Nos dias 23, 24 e 25 a instituição vai realizar uma série de palestras sobre o bilinguismo. “Falta comunicação para o surdo em diversos espaços públicos e é extremamente importante que professores e profissionais da educação aprendam a Libras. A pessoa com deficiência tem os seus direitos e o direito de ser incluída. Ela precisa ter oportunidades”, conclui.
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