Larissa Costa*
Mais do que debater características jornalístico-literárias, a primeira noite do II Simpósio Baiano de Jornalismo e Literatura, nesta terça-feira (25), trouxe outra função inscrita na imprensa e na literatura: a memória. Discursos dotados de carga simbólica e representatividade racial marcaram a mesa “Mídia, história, literatura: marcas da exclusão”, com a participação da jornalista e pesquisadora Ana Alakija, do escritor, poeta e ensaísta Wesley Correia e do antropólogo e presidente da Academia de Letras da Bahia, Ordep Serra. A mediação ficou por conta da também antropóloga e jornalista, Cleidiana Ramos. A segunda mesa do evento, promovido pela Associação Bahiana de Imprensa e a pela Academia de Letras da Bahia, acontece hoje (26), às 18h30.
A abertura foi feita pelos presidentes das duas instituições responsáveis pela organização do Simpósio. O jornalista e radialista Ernesto Marques, presidente da Associação Bahiana de Imprensa, celebrou a parceria entre as entidades, que se estende a outras instâncias da luta pela preservação da cultura e da memória baianas. “Esperamos que esse arco de aliança em defesa da cultura da Bahia, da memória, se amplie com a participação também de outras instituições igualmente importantes”.
O jornalista recordou a atuação das entidades em defesa da Quinta do Tanque, também conhecido como Quinta dos Padres ou Solar da Quinta. O casarão histórico construído no século XVI abriga o Arquivo Público do Estado da Bahia, um dos maiores acervos da história. Marques pediu aos colegas da imprensa para que continuassem a pautar o debate nos veículos, a fim de que não se esqueça da importância do acervo. Ordep Serra fez coro ao pedido. “Com a ameaça que se faz a este arquivo está se ameaçando a memória do povo negro na Bahia. Documentos importantíssimos estão lá; essa barbárie não pode acontecer”, defende.
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Na abertura da mesa, Cleidiana Ramos recordou Ana Alakija sobre um dos marcos de sua carreira: a entrevista com o Babalorixá Eduardo de Ijexá, que lhe narrou momentos onde praticava a língua iorubá sozinho, em frente ao espelho, para não se esquecer do idioma da família linguística nigero-congolesa. A pesquisadora possui um amplo histórico na luta pela preservação e redescobrimento da ascendência das famílias afro-brasileiras, como o Memorial Alakija, empreendimento iniciado pelo seu pai, o pesquisador George Alakija.
“É uma lembrança muito doce desse meu início como repórter do jornal A Tarde e que me levou para minha definição de perfil profissional”, lembra Ana Alakija. Ela conta que sua atuação foi marcada desde o começo por trazer como fontes personalidades que antes figuravam apenas como objetos da notícia. Para Ana, a ligação entre Eduardo de Ijexá e o seu espelho se assemelha à nossa relação social com as mídias e a imprensa. “A mídia é nosso espelho. O espelho, a nossa mídia”, comparou.
Invisibilidade e exclusão
Em sua exposição, Alakija descreveu a história da imprensa baiana, que nasce negra, e sua atuação decisiva em defesa da população afro-brasileira, motivo pelo qual é chamada de “imprensa de advocacia”. “O que eu ofereço aqui é uma perspectiva de interpretação da imprensa baiana, com o reconhecimento da existência de uma forma de comunicação e expressão própria como contraponto ao pensamento hegemônico e histórico”, explica.
Segundo a jornalista, a imprensa negra nasceu invisível para a historiografia e para setores dominantes da sociedade e assim permaneceu por muito tempo. “Essa imprensa [negra] pode ser definida como uma forma de comunicação social dos setores subalternos, excluídos da sociedade, por motivo de cor e classe”. Apesar de estar sob apenas um rótulo, a imprensa negra não foi algo uniforme, como provam os estudos citados pela pesquisadora. “Essa imprensa negra na Bahia iniciou e evoluiu com características diferentes de outros estados. Por exemplo, a imprensa em São Paulo buscou se organizar de forma mais ou menos semelhante à imprensa convencional, com o jornalismo impresso. Na Bahia, foi diferente. Era um jornalismo feito principalmente fora das redações, um jornalismo feito pelas entidades negras, pelo Olodum, por Ilê Ayê, pelo Os Negões, por entidades que estavam fora do mundo formal das comunicações”, afirma.
“Nem sempre os modos de produção, disseminação e reprodução da notícia da imprensa negra baiana acompanharam o da grande imprensa convencional”, continua Alakija, ao explicar que essa comunicação se moldou ao longo do cenário político baiano e internacional. “O segundo ponto é que esse imprensa vem sendo feita ao longo da história por expoentes de um conjunto da população, hierarquizada socialmente por cor e classe, excluídas dos círculos do poder, mas que fala por si própria e que até então essa fala é inexistente no anais da história da imprensa feita na Bahia”, finaliza a jornalista, pautando a invisibilidade imposta aos comunicadores negros que fizeram parte da nossa história.
A potência da literatura
A participação do escritor Wesley Correia emocionou o público e mostrou que o poeta conhece intimamente a potência da literatura no combate à desigualdade racial. Através de um ensaio, Correia relacionou a essa forma de arte o potencial pedagógico de construção de uma mentalidade antirracista. “Num contexto de intensa polarização política, de crise ética nas instituições e de ausência mesma de humanidade, pensar em como as literaturas de autoria negra produzidas no Brasil fazem frente ao discurso monorritmico, expressando diferentes subjetividades, pode nos levar a uma diferente compreensão do papel social da escrita”, defende.
“As literaturas de autoria negra promovem no Brasil contemporâneo um precioso universo discursivo e memorialístico, que esteve desprezado por anos a fio por força do racismo literário e editorial no país”, afirma. Para o escritor, o apagamento das intelectualidades das populações originárias e negras também decorre do fato da literatura brasileira ainda se prender de forma rígida à noção de cânone.
Wesley explica que à medida que os intelectuais negros e negras passam a ocupar seu espaço como autores, e que se recupera a história negada a essas pessoas, também se reconfigura um novo horizonte para a consciência literária. “É fundamental observar o papel estruturante que a linguagem assume nas relações de poder, bem como os efeitos ideológicos que este fenômeno implica na subjetividade de certos indivíduos”, coloca o escritor. Citando o psiquiatra e ensaísta Frantz Fanon, ele defendeu que, quando se nega a possibilidade de expressão de um grupo, nega-se também novas possibilidades de existência.
Segundo Correia, apesar de negada, a produção literária negra e indígena faz parte do Brasil. Não conhecê-las é desconhecer também a história do nosso país. “Ao tornar publicamente audíveis as vozes ocultas, essa rede identitária revela um caudal de saberes profundos surgidos desde os povos originários e emergidos da entranhas das comunidades tradicionais, saberes sem os quais o Brasil não pode ser lido e nem sequer pensado em sua inteireza”, completa.
Violência simbólica
Encerrando a primeira rodada da mesa, Ordep Serra colocou-se como aliado da luta antirracista. Em sua fala, o antropólogo pautou o sentimento de revolta e indignação que deve nos mover ao reconhecer a violência simbólica que é negar a produção intelectual negra. “Como negar a violência simbólica aqui denunciada? Que é tolher o espaço do negro, sufocar sua voz, tirar sua expressão, negar sua historicidade”, questiona o professor, que é ogã (sacerdote no candomblé).
“Estamos vivendo uma repetição da ditadura, uma onda facista que se espalha a partir do governo federal. Uma violência racista da mais extraordinária. A gente se interroga como se gerou essa onda facista, que tem raízes profundas na nossa história escravocrata. No fundo é uma mentalidade escravocrata que não cessa”, continua Ordep, para quem a primeira onda negacionista é a que caracteriza o racismo estrutural no Brasil.
O pesquisador recorda o caso do artigo publicado na Folha de S. Paulo por Antônio Risério, que alega haver um suposto “racismo reverso” de negros contra brancos. O artigo, que suscitou diversas reações nos últimos dias – incluindo uma carta de 186 jornalistas da Folha posicionando-se contra a decisão do jornal de ceder espaço para artigos desta natureza -, causou também manifestações na noite de ontem. “Foi uma ofensa ao jornalismo brasileiro, foi uma ofensa à inteligência brasileira. Me falem aí quem são os brancos que estão sendo oprimidos pelos negros no Brasil, porque eu não vejo isso. Eu vejo opressão, eu vejo chacina dos povos indígenas e dos povos negros no Brasil”, argumenta.
O presidente da ALB usou seu espaço para relembrar histórias que ele pôde acompanhar, que também expressam a forma como o Estado atua pela preservação ou não preservação da história negra na Bahia. Houve o caso da luta pela preservação da Casa Branca do Engenho Velho, conhecida como matriz de outras Casas, e outra luta, também empreendida por Cleidiana, pela extinção definitiva do Museu Estácio de Lima do Departamento de Polícia Técnica do Estado da Bahia (DPT), que exibia peças de cultos de candomblé, retiradas indevidamente de terreiros, ao lado de cabeças decepadas de cangaceiros e partes deformadas de corpos humanos.
No entanto, apesar dos esforços de apagamento da história oficial, o professor frisa que o Brasil se constrói espiritualmente negro e indígena. “Os negros fizeram intelectualmente e espiritualmente o Brasil, não foi só o trabalho de suas mãos. Foi com seus corações, com sua mente, com sua inteligência que se fez este país”, finaliza.
A programação do II Simpósio prossegue na noite desta quarta (26), às 18h30, com a mesa “Mídia, política e economia: estratégias, interfaces”. Para o debate foram convidados o professor e editor do portal Bahia Econômica, Armando Avena, o editor do site LEIAMAISba Alberto Oliveira e o jornalista e empresário Raimundo Lima. O jornalista Luiz Fernando Lima será responsável pela mediação.
Assista abaixo:
*Larissa Costa, estudante de Jornalismo, estagiária da ABI.
Edição: Joseanne Guedes