Uma invenção típica dos ambulantes de Salvador, os carros de cafezinho viraram tema da dissertação de mestrado do museólogo Eduardo Araújo Fróes, com o título “Um patrimônio em movimento: os carrinhos de café nas ruas de Salvador”. Sob orientação da professora Maria das Graças Teixeira, o trabalho foi apresentado na manhã desta sexta-feira (28), na sede da Associação Bahiana de Imprensa (ABI), numa ação do Museu de Imprensa da ABI. A banca examinadora foi composta pelo vice-reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor Paulo Miguez, e pela professora Mary Weinstein, que participou via videoconferência.
Os famosos carrinhos são feitos de madeira e comandados por uma guia de direção. As garrafas térmicas dividem o espaço com poderosas caixas de som, que dão um ar de trio elétrico ao tradicional carrinho de café. Sempre entoando o hit do momento e todo o colorido que estampa as ruas de Salvador. Mesmo sendo parte importante do patrimônio cultural da cidade, não existe um reconhecimento. Foi esse descaso com a cultura popular da Bahia que despertou o interesse de Eduardo Fróes pelo tema.
“A decisão partiu de uma leitura que fiz, em que eu havia identificado uma preocupação de Dimitri Ganzelevitch. Foi ele quem primeiro olhou esses vendedores e seus carrinhos aqui na cidade, através da iniciativa de um concurso que buscava a valorização desses profissionais”, afirmou Fróes, ao se referir ao marchand e colecionador francês.
O pesquisador conta que Dimitri demonstrou muita preocupação com o descaso com a cultura popular da Bahia. “Então, eu percebi que essa lacuna poderia servir de incentivo para utilizar tanto os vendedores de cafezinho quanto seus instrumentos de trabalho como objeto de estudo dentro da museologia”, declarou Fróes.
Com o objetivo de valorizar o trabalho dos vendedores de cafezinho e sua criatividade, Dimitri Ganzelevitch, que mora em Salvador desde 1975, criou o Concurso de Carrinho de Café, para eleger o carrinho mais criativo a cada ano. A ação aconteceu até o ano de 2007, encerrando por falta de apoio. Para o morador do bairro de Santo Antônio, esses personagens dão vida e identidade à cidade. Ele aproveita para protestar sobre o descaso com o patrimônio cultural.
“É absolutamente vergonhoso que a primeira capital do Brasil, o estado mais antigo, não tenha uma referência de cultura popular, é absolutamente inadmissível. Recife tem, Rio tem, São Paulo tem, Fortaleza também e nós não temos absolutamente nada. Um carro de cafezinho que eu tinha em minha coleção foi apresentado em uma exposição da qual eu fui curador em Paris e em Marrocos, agora está no Museu do Homem do Nordeste, em Recife. Aqui não temos absolutamente nada, nenhum registro físico. Temos fotografias, graças ao trabalho de nosso amigo Eduardo e outras pessoas”, afirma Dimitri Ganzelevitch.
Patrimônio vivo – Valorizar o fator humano antes do elemento material e histórico, estabelecendo a relação entre ambos. Esse é o papel da museologia social, segundo Eduardo Fróes. “É a comunidade que determina o que ela quer como patrimônio, o que ela entende como seus objetos representativos e de identidade, não uma imposição que muitas vezes os museus tradicionais e os próprios órgãos relacionados à preservação do patrimônio impõem”, reflete Fróes.
O vice-reitor da UFBA, Paulo Miguez, integrou a banca de exame da dissertação e lembrou da presença desses vendedores ambulantes na história da cidade.“Você [Eduardo Fróes] nos traz isso que nos encanta e vai buscar nos cafezinhos uma tradição baiana, que é secular, da venda de rua, dos mercadores de rua, lá atrás com os negros libertos, os escravos participando como escravos de ganho, enfim, a presença do negociante de rua, do ambulante é algo que compõe a paisagem dessa cidade há muito tempo”, finalizou Miguez.
Trajando um jaleco branco, o qual lhe conferiu o pelo apelido “Doutor do Café”, Cícero Barbosa de Matos confessa ter voltado à venda do cafezinho há dois anos por causa do desemprego. Para ele, a pesquisa oferece uma oportunidade para ampliar a divulgação de sua atividade para mais pessoas. “Um trabalho surpreendente, gostei muito. Os carrinhos de cafezinho, de modo geral, precisam de uma referência e Eduardo está sendo essa referência, através dessa pesquisa. Eu acredito que as coisas vão andar positivamente em relação aos carrinhos de café em Salvador”, comemora o vendedor de café que atua na região de São Joaquim e Calçada.
A professora e orientadora Dra. Maria das Graças Teixeira destaca o valor social da pesquisa, que estabelece um diálogo entre a sociedade e a universidade. “O trabalho de Eduardo é um encontro da universidade com a sociedade, uma pesquisa que não vai ficar nas prateleiras frias das bibliotecas da universidade. É um trabalho de denúncia e reconhecimento dessas pessoas que fazem esse movimento, que dão esse colorido à cidade de Salvador. Os vendedores dos carrinhos de café são uma marca exclusiva da sociedade soteropolitana, é uma marca de Salvador”.
O evento contou com o apoio da museóloga da ABI Renata Ramos, que intermediou a realização da cerimônia no espaço da entidade. Além dos estudantes de museologia, pesquisadores e vendedores ambulantes, estiveram presentes integrantes do grupo Viola de Doze, autores da música que homenageia os vendedores de cafezinho: “Melô do Cafezinho”.
*Estagiário sob a supervisão de Joseanne Guedes.