A charge “O auxílio”, do ilustrador mineiro Cau Gomez, reacendeu o debate sobre a garantia da livre expressão da atividade intelectual, artística e de comunicação. Publicada pelo jornal A Tarde no final de novembro, a charge mostra uma fila diante de um bicho-preguiça que usa uma gravata com a logomarca da Caixa Econômica Federal. Bancários se manifestaram publicamente pedindo retratação ao veículo, enquanto Cau, mesmo defendendo que esteja sendo mal interpretado, rechaça a tentativa de intimidação ao seu trabalho. Na manhã desta quarta-feira, a Diretoria da Associação Bahiana de Imprensa (ABI) aprovou uma Moção de Solidariedade ao cartunista.
No texto, a entidade alerta que os protestos em reprovação ao trabalho de Cau Gomez desencadearam uma onda de agressões virtuais contra o profissional nas redes sociais, em seu telefone pessoal e sua caixa de e-mails, assim como numa campanha por cancelamento de assinaturas do centenário jornal A Tarde. O documento da Associação termina com um convite para que todas as pessoas que se manifestaram contra a charge conheçam o trabalho do artista e reflitam sobre “o peso de palavras e atos a ele dirigidos”. (Confira a íntegra ao final deste texto)
Para Cau, a leitura da obra feita pelos sindicalistas foi precipitada. Ele conta que esperou o assunto acalmar para se manifestar publicamente sobre o caso. Quando a publicação completou uma semana, concedeu entrevista para a Associação Bahiana de Imprensa (ABI). “Acho que, com esse tempo desde que houve a publicação, a gente consegue sensibilizar o olhar. A charge foi feita para atingir a cúpula, a cabeça, não o corpo, não os funcionários. Eu coloquei a gravata no bicho-preguiça para criticar a direção da empresa por todos esses problemas que penalizam os mais pobres”, justificou o artista premiado internacionalmente.
Cau relata que recebeu muitas mensagens negativas sobre o seu trabalho e acredita que as manifestações dos bancários incentivaram isso. “Acredito que combatemos as mesmas coisas. Nosso alvo é a incompetência do governo federal. Eles foram precipitados na crítica e na leitura do meu desenho. Se as condições de trabalho do funcionário do banco e o atendimento ao público melhorarem, está valendo”.
Pedidos de retratação
Segundo o vereador Marcos Mendes (PSOL), que é funcionário da Caixa há 31 anos, a charge associa os servidores do banco estatal ao “bicho-preguiça” e sugere que as longas filas do Auxílio Emergencial se devem à lentidão dos funcionários do banco. Em nota, o vereador afirmou que o jornal A Tarde precisa respeitar os servidores da Caixa e cobrou retratação pública pelo periódico, chegando a protocolar uma moção de repúdio na Câmara Municipal de Salvador. O documento, no entanto, ainda não foi apreciado pela Casa. A nota divulgada pela equipe do vereador lista uma série de desafios enfrentados pelos funcionários da Caixa por conta da pandemia, além de outras demandas da categoria. Como se diz no jargão jornalístico, a charge serviu de “gancho” para as reivindicações. O vereador foi procurado pela reportagem da ABI, mas até o fechamento desta matéria não havia se pronunciado*. (Esta matéria foi atualizada às 12h do dia 10/12 para adicionar as respostas enviadas pelo vereador. Confira ao final deste texto)
A breve nota divulgada no site do Sindicato dos Bancários tem teor similar ao da nota de Mendes. Também repudia a charge, pede retratação do jornal e lista pleitos da categoria após indicar que a charge de Cau compara os funcionários da Caixa ao bicho-preguiça. “Para o Sindicato, é um verdadeiro desrespeito com os funcionários da Caixa, que estão desde o início da pandemia trabalhando intensamente sem o apoio de qualquer outro órgão para fazer valer o pagamento deste direito”. É o que se lê em trecho da nota (leia a íntegra).
Do mesmo lado
Cau Gomez não tem problema em expor seu posicionamento político de esquerda. Detalha que seu trabalho sempre foi de defesa ao trabalhador, que sempre se alinhou aos aspectos democráticos e acredita que está do mesmo lado do “front” daqueles que agora o criticam por conta da charge, e lamenta que tenham desconsiderado seu histórico ao repudiarem a charge “O auxílio”. “Se tem alguém rindo disso tudo, esse alguém está no escritório, longe dos riscos, longe dos perigos da rua em meio a pandemia”, afirma.
Cau trabalhou por 15 anos no jornal A Tarde e há pelo menos três anos é colaborador freelancer. O mineiro de 48 anos, que mora em Salvador desde 1993, tem 33 anos de carreira com passagens por veículos da editora Abril, como a revista Playboy, já trabalhou para os jornais O Estado de S. Paulo (SP), Bahia Hoje (BA) e Hoje em Dia (MG).
Charge divide opiniões
Em grupos de WhatsApp, jornalistas discutiram a charge e as opiniões se dividiram, com indicação de que a peça seria controversa. Houve defesa de “limite” para a liberdade de expressão, conclusão de que Cau “pesou a mão”, manifestações de solidariedade a Cau e defesa da liberdade de criação. A repercussão do caso inflou tanto críticas aos funcionários da Caixa quanto fez jornalistas defenderem que o alvo da charge seria claramente a direção da instituição junto com o Governo Federal, como diz o autor.
“Eu acho que o chargista tem todo o direito de fazer sua charge. Mas acho também que os funcionários da Caixa têm todo o direito de criticar. Se tanto o chargista quanto os funcionários da Caixa são trabalhadores, como escolher um lado?”, declarou uma das integrantes de um grupo de debate de jornalismo.
Ouvido pela ABI, o jornalista Rogaciano Medeiros, que edita o jornal O Bancário, defende que a leitura da charge seria “factual” e que há um histórico que sustenta a interpretação de que a charge atinge os bancários. “A grande mídia sempre critica o funcionalismo”, afirma. Rogaciano, no entanto, esclarece que não houve ataque a Cau Gomez, mas um pedido de retratação ao veículo, ao A Tarde, pela publicação. Ele diz que os espaços do jornal O Bancário e de seu site estão abertos para qualquer esclarecimento que Cau tenha a fazer sobre a obra.
Cau diz que, por conta da repercussão, o que mais teme agora é a autocensura, o medo de algum novo mal-entendido. Ele conta que tem mantido contato com sua chefia em A Tarde e tem recebido o apoio da instituição. Procurada pela ABI, a chefia editorial informou não ter interesse em se manifestar sobre o caso, mas reforçou que apoia a liberdade de seus colaboradores.
- Confira a seguir a íntegra da moção aprovada pela ABI:
MOÇÃO DE SOLIDARIEDADE AO CHARGISTA CAU GOMEZ E EM DEFESA DAS LIBERDADES DE CRIAÇÃO E DE EXPRESSÃO
A diretoria da Associação Bahiana de Imprensa (ABI), reunida em 9 de dezembro de 2020, véspera do Dia Internacional dos Direitos Humanos, aprovou a presente moção de solidariedade ao chargista e ilustrador Cau Gomez e em defesa das liberdades de criação e de expressão. Ao publicar charge a respeito das desumanas filas a que milhões de brasileiros e brasileiras são submetidos para recebimento do auxílio emergencial, em função da pandemia do novo coronavírus, Gomez e o jornal A Tarde foram alvo de manifestações de repúdio de entidades representativas estaduais e nacionais dos economiários da Caixa Econômica Federal e dos bancários.
Os protestos legítimos de quem, com o mesmo direito de expressar livremente opinião, se manifestou em reprovação ao trabalho de Cau Gomez, desencadearam onda de agressões virtuais contra o profissional nas redes sociais, em seu telefone pessoal e sua caixa de e-mails, assim como numa campanha por cancelamento de assinaturas do centenário jornal A Tarde.
Lideranças sindicais e parlamentares que estimularam esse tipo de manifestação de intolerância em afronta à liberdade inegociável e imprescindível, intrínseca à atividade jornalística, na qual se insere o trabalho de profissionais criativos, como o internacionalmente premiado e reconhecido Cau Gomez, se configuram em grave e perigoso equívoco. Numa quadra da história brasileira em que sobejam razões fáticas para se temer ataques às liberdades democráticas, os ataques ao chargista e ao jornal onde publica seus trabalhos tem precedente recente vivenciado pelo também chargista Aroeira.
Os incomodados com o trabalho de Cau Gomez e Aroeira, antípodas no espectro ideológico, se nivelam em intolerância e incapacidade de compreensão do jornalismo crítico que se serve da criatividade dos chargistas para tratar assuntos do cotidiano. E ninguém, nenhuma instituição ou segmento social pode se achar acima de críticas e questionamentos. Nem a imprensa.
A Associação Bahiana de Imprensa, coerente com seus 90 anos de história em defesa da democracia e da imprensa livre, se solidariza com Cau Gomez e toda a redação do A Tarde e convida todas as pessoas que se manifestaram contra sua charge a conhecerem o trabalho do artista e refletirem sobre o peso de palavras e atos a ele dirigidos.
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*Respostas de Marcos Mendes (enviadas após a publicação deste texto):
1 – “Acredito que as duas partes combatem as mesmas coisas. E o nosso alvo é a incompetência do governo federal. Eles foram precipitados na crítica e na leitura do meu desenho”. O que o senhor tem a dizer sobre essa declaração de Cau Gomez? Depois de passado o calor do momento, acredita que houve um mal-entendido?
A charge está muito clara. Traz um bicho-preguiça e ele representa os funcionários da Caixa. Em momento algum, faz alusão a Bolsonaro. Por que ele não retratou Bolsonaro usando um chicote nos funcionários, por exemplo? Ou Bolsonaro ao lado do bicho-preguiça? Não teve má interpretação. Acho que ele poderia reconhecer que representou os funcionários da Caixa. Ele vacilou, foi infeliz nessa charge. Todas as pessoas que consultei entenderam que a charge faz referência a funcionários lerdos diante de uma fila enorme.
2 – O senhor considera retirar a proposta da moção de repúdio?
Em nenhum momento eu considerei retirar a proposta, ela está mantida e o presidente disse que aprovará na próxima sessão. Sou funcionário da Caixa e a gente tem que se posicionar. Não tenho problema com Cau. Ele é um excelente chargista. Não vejo problema a pessoa dizer que errou. Ele poderia fazer o reconhecimento público, pedir desculpas aos funciionários da Caixa. Demonstraria grandeza.
3 – O caso de Cau tem sido comparado ao episódio do chargista Renato Aroeira, em junho. Na ocasião, o seu partido acionou a Comissão de Ética e o MPF contra a censura sofrida pelo artista. Por que não houve tratamento semelhante em relação a Cau? O senhor pode apontar as diferenças entre os casos?
A questão de Aroeira não tem nada a ver. São coisas completamente diferentes. Aroeira estava claro o direcionamento Bolsonaro e o presidente atacou o direito de imprensa. Nosso partido pensa da mesma forma. Liberdade de imprensa não quer dizer que a imprensa não receba críticas. Na Reforma da Previdência, por exempo, toda a imprensa foi extremamente parcial. Precisamos defender uma imprensa imparcial. As TVs mentiam. Isso não é imprensa. O jornal A Tarde deveria ter feito críticas contundentes aos bancos privados, que em nenhum momento se dispuseram a ajudar. Por que não fez?