“Nesses tempos estranhos, em meio à maior crise sanitária de nossa história, falamos de uma entidade que sobreviveu a golpes e contragolpes”. Com essa fala, o jornalista Ernesto Marques, presidente da Associação Bahiana de Imprensa (ABI), abriu a primeira live comemorativa dos 91 anos da ABI, nesta terça (17). A noite foi dedicada a uma figura proeminente da cultura baiana: o cineasta e jornalista Glauber Rocha. Com o tema “O script de um gênio do cinema”, o evento teve a presença do escritor, jornalista e poeta Florisvaldo Mattos, e do cineasta e dramaturgo José Umberto Dias. Já a mediação ficou com o jornalista Kau Rocha.
Durante o evento, José Umberto anunciou uma valiosa doação para a ABI. Em breve, todo o acervo de matérias, fotos, vídeos e livros que ele garimpou sobre Glauber receberá os cuidados da equipe de restauro e conservação da Associação e estará disponível ao público.
O diretor de cultura da ABI, Nelson Cadena, saudou o ato. “A ABI consolida seu papel como guardiã da memória do cinema baiano. Tenho certeza que o acervo de José Umberto virá para nos enriquecer e dará visibilidade à importância que a ABI tem nesse sentido”, salienta o pesquisador.
Outra contribuição para preservação da memória do cineasta será a doação de fitas de uma conversa entre Glauber, André Setaro e João Ubaldo Ribeiro, na época ainda redator da Tribuna da Bahia. Nunca ouvidas, as fitas devem ser digitalizadas antes de serem compartilhadas.
Glauber jornalista
Nas palavras de Ernesto Marques, a noite promoveu o encontro do Glauber jornalista com o Glauber cineasta. Justamente essa sinergia foi pauta do encontro. Florisvaldo Mattos, cuja apresentação “Glauber Rocha, o criador que eu conheci”, recordou o Glauber jornalista. Mattos integrou em Salvador o grupo da chamada Geração Mapa (revista Mapa, em 1957-58), liderado pelo cineasta Glauber Rocha e integrado por nomes como João Ubaldo Ribeiro, Sante Scaldaferri, Calasans Neto e Paulo Gil Soares.
Florisvaldo lembrou da manhã em que conheceu o jovem Glauber Rocha. “Nossa relação começou de uma forma certamente exótica. Eu estudava direito. Uma manhã, o porteiro veio me dizer que alguns rapazes me procuravam na portaria. Quem falou foi Glauber: ‘nós viemos aqui procurar Florisvaldo Mattos, porque ele publicou um poema e consideramos que se trata do melhor poema modernista da Bahia’”, relata.
A partir daí, Mattos passaria a entregar o grupo de conversas de Glauber. Influenciado por ele, passou a trabalhar como repórter no Jornal da Bahia, que surgia com uma nova proposta de jornalismo, menos centrado no formato da crônica. Florisvaldo conta que foi numa apuração de um caso de suicídio envolvendo um jovem que ganhou a aprovação de Glauber. “Passei a ser um repórter que poderia exercer vários tipos de narrativa”.
Foi também com a criação do suplemento dominical do Diário da Bahia que o cineasta marcou sua presença no jornalismo. “Glauber levou vários jovens que estavam se desenvolvendo na área do cinema. Lá, ele criou uma coluna social que seria exercida pela atriz Helena Ignez, sua esposa”, comenta Florisvaldo.
Glauber Cineasta
Foi o Glauber Cineasta quem inspirou José Umberto, mas para ele Glauber era mais do que isso. “Ele era um homem com vertentes ligadas à literatura, ao jornalismo, ao cinema e, sobretudo, ao teatro. Era uma figura que aglutinava, muito inquieta, com muitas faces e muitas maneiras de se conduzir perante o cinema e perante a própria vida”, afirma Dias, seguidor dos passos de Glauber no cinema.
José Umberto afirma que o que torna o diretor marcante para a história do cinema no Brasil é a ruptura que ele promove. Num momento marcado pelas pornochanchadas e pela produção do estúdio Vera Cruz, mais comercial, Glauber surge, influenciado por movimentos internacionais, como o neorrealismo italiano, a nouvelle vague e o cinema do diretor soviético Serguei Eisenstein. “Quando surge Glauber nesse momento, ele faz um trabalho de guerreiro contra o tipo de situação que o Brasil vivia no cinema. A visão de Glauber já era diferente”, reflete Dias.
A influência dele vai além da escolha profissional de José Umberto. Partes da trajetória de ambos se encontram, como a atuação no Jornal da Bahia. Hoje, o interesse que Dias alimentou por Glauber ao longo dos anos se reflete na coleção que acumulou sobre o cineasta. “Esse acervo é resultado desse meu interesse, obsessão até. Porque é uma pessoa que realmente me norteou na vida em nível do conhecimento, não só do cinema”.
A doação de José Umberto para a ABI vem em um momento onde a memória brasileira se encontra ameaçada pelo descaso. O cineasta lembra que parte do material deixado por Glauber foi destruída no incêndio da Cinemateca Brasileira (SP). Para ele, esse ato marca o reconhecimento da importância da Associação. “Essa Associação é uma grande instituição, que defende a democracia e a liberdade de expressão. É muito importante para nós que estamos aqui e que precisamos de ar puro”, elogia.
O evento deu início a uma série de lives promovidas pela ABI em comemoração aos seus 91 anos. Estão previstos ainda quatro encontros até setembro. No dia 31 deste mês, a Associação irá promover o segundo evento online, com o tema “As MPs de Bolsonaro: mirou nos jornais, acertou na transparência”.
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31/08 – Como o esvaziamento das leis de transparência afeta o jornalismo?
08/09 – Assédio judicial – uma ameaça em toda parte
14/09 – O papel da imprensa: falhas e omissões
21/09 – Comunicação e acessibilidade
Confira a live de ontem (17/08):
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*Larissa Costa, estagiária de Jornalismo
Supervisão: Joseanne Guedes