Por Pedro Varoni*
A discussão sobre modelos de negócio para o jornalismo digital só pode ser pensada no contexto histórico da emergência da internet como paradigma de mudança comunicacional muito mais ampla do que a adição de tecnologias de comunicação. O alcance global, o rompimento de barreiras de tempo e espaço e a interatividade mudaram as relações culturais, sociais e econômicas em todos as áreas, com grande impacto na indústria de mídia.
O pesquisador de mídia norte-americano Roger Fidler propõe a noção de midiamorfose para pensar como os novos meios, historicamente, encontram seu código comunicacional. O rádio começa como um jornal falado e a televisão como rádio com imagens. As transformações na mídia demonstram que há um tempo de maturação e assimilação de novas tecnologias. As mudanças que vivenciamos com as tecnologias digitais é mais complexa porque impacta de forma intensa os modelos de negócio.
A ruptura tecnológica e social provoca a morte de meios tradicionais ou mesmo da carreira de jornalistas que não se adaptam à nova realidade. Hábitos como ler jornais ou assistir o noticiário na TV com horário marcado tornam-se anacrônicos para as novas gerações: acostumadas ao fluxo ininterrupto de informações e a possibilidade de organizar os arquivos digitais de seu interesse para assistir quando quiserem.
O fenômeno é conhecido: fechamento de veículos impressos, declínio da audiência na televisão, desemprego de jornalistas e falta de vagas para os iniciantes na carreira. Entre outros fatores, a consequência é a tendência de ruptura do modelo de negócio tradicional das mídias com o processo de perda de anunciantes que sustentam o jornalismo de qualidade. A migração do dinheiro da publicidade para a o digital se justifica tanto por preços de veiculação mais baratos quanto os sistemas de monitoramento que permitem acertar o público alvo com maior precisão. Grande parte das verbas de anúncio alimentam, entretanto, as grandes corporações da internet.
É um modelo que traz riscos a existência de uma imprensa livre e fiscalizadora que hoje se vê desafiada a inovar tanto nos modelos de financiamento quanto nas formas de produção e narrativa.
A interatividade como característica constitutiva do digital faz com que a transferência de controle mude do emissor para o receptor. Na rede, os usuários desempacotam as informações de acordo com seus interesses e precisam se sentir parte da produção de conteúdo. O mundo digital é criativo, inovador e dinâmico e todos potencialmente são produtores de conteúdo. O resultado é a perda do tradicional papel mediador do jornalismo diante da emergência de novos modelos e formatos a partir, por exemplo, da difusão de blogs e vlogs.
O jornalista e pesquisador norte-americano Dan Gillmor observa que nesse contexto o jornalismo deixou de ser uma aula para ser uma boa conversação e a comunidade de leitores, qualquer que seja o assunto, tende a saber mais que o jornalista. Esse novo modelo demanda a criação de experiências radicais como a agência de notícias coreana “Oh My News” que tem milhares de repórteres cidadãos (o lema do grupo é “cada cidadão é um repórter”) remunerados na medida em que sua reportagem seja publicada. Cabe aos jornalistas fazer a curadoria das informações e organizar os fluxos.
Diante desse contexto, os modelos de negócio para o jornalismo digital impactam tanto as grandes corporações de mídia quanto indicam possíveis caminhos individuais ou coletivos para os profissionais da imprensa. Os novos modelos de negócio no digital demandam, entre outras coisas, gestão estratégica de projetos, definição de processos e recursos redacionais articulados com os formatos narrativos, absorção e aplicação de tecnologias e relacionamento contínuo com a audiência.
O novo ecossistema de mídia tem favorecido iniciativas empreendedoras de caráter individual ou em coletivos, visto tanto como potencial econômico como saída para o desemprego e falta de vagas nas mídias tradicionais. A palavra de ordem passa ser inovação, algo inerente a atividade jornalística. Toda primeira página de jornal ou escalada de TV busca, potencialmente, inovar; mas no mundo pós-industrial a expressão aparece com um sentido de diálogos entre áreas- pensar a produção de conteúdos jornalísticos de forma articulada a tecnologia, ao marketing e a administração. Trazendo da área econômica a ideia de produto e processo na modelagem de negócios.
Em recente dossiê sobre inovação e jornalismo digital publicado na revista Contemporânea de Comunicação e cultura da Universidade da Bahia, a Professora Leyla Dagruel observa que não é possível transpor os modelos econômicos de inovação para o campo das mídias. Propostas baseadas no binômio produto e processo são insuficientes para tratar do campo midiático ou jornalístico pelo impacto cultural e social que as produções provocam. Inovações midiáticas contribuem para mudanças sociais e econômicas.
A inovação nos produtos simbólicos está ligada a produção de bens e serviços que primeiramente impactam a estética ou o apelo intelectual (soft innovation), mais do que o desempenho funcional. Nesse sentido, um livro, um game ou novos modelos de jornalismo são, potencialmente, ao mesmo tempo inovação de linguagem quanto podem ter impacto nos modelos de negócios. Isso porque existe hoje uma relação sistêmica entre conteúdo, tecnologia, audiência e monetização.
Mesmo que não seja necessário, ao jornalista, dominar as ferramentas de áreas como administração, tecnologia ou marketing é preciso saber dialogar com os pares de modo a constituir um planejamento capaz de financiar os projetos — seja numa dimensão de ações empreendedoras em coletivos ou dentro das corporações.
Nesse cenário, há uma proliferação de discursos em vários países do mundo sobre como jornalistas podem criar seus próprios meios, fato agravado no Brasil pela precarização do trabalho e enxugamento de postos. A noção de jornalismo empreendedor ou jornalismo de startups passa a ser bastante difundida. O mercado das startups emerge como característica do jornalismo pós-industrial e deve ser elegível ao investimento a partir da identificação de uma necessidade social ainda não contemplada.
As startups transformam ou inventam um mercado. No Brasil, muitas vezes elas despontam como alternativa para remediar demissões e reproduzem, por vezes, o modelo tradicional das grandes mídias. Mas o desafio que se impõe, com impacto na formação dos jornalistas, é pensar a visão sistêmica da comunicação contemplando modelos de negócio e gestão de equipes, além de formas de captação de recursos.
A economia das startups de jornalismo no Brasil tem o desafio de se adequar à dinâmica de um mercado que busca soluções concretas para problemas da sociedade — muitas vezes ainda não vislumbrados — mais do que ser uma alternativa de caráter alternativo ao desemprego.
Para que haja esse salto é preciso investir num novo tipo de formação empreendedora nos cursos de jornalismo, pensando de forma complexa as particularidades de produção de conteúdo simbólico como processo, mas também como paradigma.
Leyla Dagruel cita como exemplo a indústria da música em que o impacto de uma mudança tecnológica como o streaming afetou toda a rede produtiva e provocou adaptações, redefinindo paradigmas. Algo do tipo ocorre também com o vídeo on demand, transformando os modelos de negócios da TV. O cenário é de desafios e possibilidades. E a exemplo de outras mudanças midiáticas, começa a se delinear agora com maior clareza as possibilidades do código de comunicação no meio digital que sugerem, ao mesmo tempo, potencialidades narrativas, oportunidades de negócio e impacto social.
O jornalismo participativo dialógico que se delineia é um campo fértil capaz de redefinir os paradigmas que orientaram a profissão na era industrial. Mas a transição de um modelo ao outro não se faz sem alguma dor.
*Pedro Varoni é jornalista e editor do Observatório da Imprensa. Originalmente publicado no Observatório, em 02/10/2017.