*Luis Guilherme Pontes Tavares
Emitido o comentário categórico – “Ruy Barbosa foi patrono do design brasileiro” –, fui buscar o lastro para a sentença. Dissera isso diante do designer gaúcho Gringo Cardia e da socióloga Bete Capinan enquanto diretores da Associação Bahiana de Imprensa (ABI) lhes mostravam o acervo bibliográfico e documental do Museu Casa de Ruy Barbosa, ora resguardado no 8º andar do Edifício Ranulpho Oliveira, sede da Casa do Jornalista. Pois é. Foi Ruy Barbosa quem ofereceu o aval ao jornalista que assina este breve artigo.
O episódio ocorreu em 14 de julho passado, ocasião em que Gringo Cardia assinou contrato com a ABI, em ato em que o presidente da instituição, jornalista Ernesto Marques, manifestou a confiança de que o novo parceiro elabore projeto museográfico para assegurar a qualidade e a atratividade que o Museu Casa de Ruy Barbosa (MCRB) terá quando for reaberto, quiçá em 2023, ano do primeiro centenário de morte do extraordinário baiano, em cuja casa natal o equipamento seguirá atraindo visitante, como o fez durante muitos anos desde 1949.
O aval do jornalista, jurista, político, diplomata baiano Ruy Barbosa (1849-1923) à minha sentença é o discurso que ele proferiu em 23 de novembro de 1882 no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Homenageava então o arquiteto carioca Francisco Joaquim Bittencourt da Silva (1831-1911) por ter edificado, há 27 anos, o Liceu. O discurso “O desenho e a arte industrial” (aqui) foi publicado em folheto e enaltece a iniciativa e, na segunda das 23 páginas do documento, afirma: “O homem que concebeu a ideia deste instituto criou para o seu país um mundo novo.”
O DESENHO INDUSTRIAL
A preciosa peça redacional de Ruy Barbosa elogia Bittencourt da Silva pela relevância que emprestou ao desenho na formação educacional do brasileiro e ao espaço que ele assegurou às mulheres nos cursos do Liceu. Estávamos, é bom lembrar, em 1882, e as moças de então tinham o destino, quiçá honroso, de cuidar da casa e dos filhos. Ruy Barbosa, no discurso, passeia pelo mundo, sobretudo pelos EUA e pela Europa, acentuando a relação do desenho com a indústria e, assim, identifica, como preparado conhecedor da matéria, os países que se valeram do design industrial para expandir e diferenciar sua produção.
O autor de “O desenho e a arte industrial” informa:
“A noção da arte aplicada, como elemento essencial a todos os produtos da indústria humana, não existia, por assim dizer, antes da centúria [final do Século XIX] que atravessamos. A Escola dos Bronzistas Franceses, a Escola Industrial de Tolosa, as de desenho e pintura na fábrica de porcelana de Sèvres e raros institutos mais constituíam, até ao fim do século XVIII, os mais consideráveis, senão os únicos núcleos de educação técnica nesta ordem de estudos, num país, como a França, aclamado, entre todos, como o mais consumado produtor de trabalhos de gosto industrial nos tempos modernos. (…). O aspirante à iniciação nos seus mistérios penetrava na tenda do mestre, não para formar sistematicamente a sua vocação, mas para colher a alma do artista esparsa no sacrário da oficina, a sua intuição, a sua inspiração, o seu estilo pessoal. O público e o operário eram ignorados pela arte.”
O orador ressalta esta constatação:
“Hoje [1882], o ensino popular do desenho, que em si encerra a chave de todas as questões e de todos os destinos no domínio da arte, é, entre todas as nações cultas, um fato total ou parcialmente consumado. Já se pôde escrever que esse desideratum fixa em si a grande preocupação dos nossos dias.” E completa com novo elogio ao papel do desenho no desenvolvimento educacional e econômico da humanidade: “Que agente é esse, capaz de operar no mundo, sem a perda de uma gota de sangue, essas transformações incalculáveis, prosperar ou empobrecer Estados, vestir ou despir aos povos o manto da opulência comercial? O desenho, senhores, unicamente, essa modesta e amável disciplina, pacificadora, comunicativa e afetuosa entre todas: o desenho professado às crianças e aos adultos, desde o Kindergarten [Jardim de Infância] até à universidade, como base obrigatória na educação de todas as camadas sociais. Um quarto de século bastou-lhe para revolucionar assim as ideias, e produzir, na face das maiores nações, essas estupendas mudanças.”
E acrescenta:
“A indústria, nos nossos dias, utiliza, nas suas mais finas criações, o gênio e a habilidade artística no mais elevado grau. Entre esses dois domínios, que se discriminam simplesmente por uma gradação de matizes, há uma dependência indissolúvel: não é possível aparelhar o artista para as artes industriais, ‘sem aproximá-lo, até certo ponto, da vereda que conduz à grande arte’ [sem referência]. Na essência, pois, as belas-artes e as artes industriais são duas naturezas homogêneas e homorgânicas. Todavia, não se lhes confundem os papéis. Uma olha a efeitos superiores: é o fim de si mesma; paira independente nas regiões do ideal. A outra tende a esparzir o belo nos hábitos mais frequentes da existência humana. Uma não se entrega, senão a uma família necessariamente mais ou menos limitada de espíritos distintos; a outra não se recusa a ninguém. Uma repele a convencionalidade; imita livremente, nas suas concepções, as formas na natureza. Na outra, cuja lei é tratar como simples motivos as aparências gerais da criação, estilizando-as em tipos de beleza, a tendência naturalística exprime a incapacidade do artista e a sua estranheza aos métodos históricos.”
O LICEU E O FUTURO
O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, após seguidas reformas, prossegue no mesmo endereço em que foi edificado na segunda metade do século XIX: Rua Frederico Silva, no Centro. Há mais de um século, Ruy distinguiu a instituição com estas palavras:
“O Liceu de Artes e Ofícios é a encarnação mais eficaz e mais completa deste movimento. Abri os olhos no seio dele, e involuntariamente perguntareis: é o Brasil? Eu ia perguntar: é a rotina? Não. É uma visão realizada. É uma miragem colhida por um gênio. É um oásis no areal. É o futuro. De ora avante, se quiserdes determinar a estatura aos estadistas nacionais, tendes aqui a medida: aferi-os pelo zelo com que tratarem esta casa, – permiti-me dizer-vos: este templo. Por quê? Porque o Liceu encerra em si a fórmula mais precisa da educação popular, e a educação real do povo é a educação da nação. Essa fórmula tem dois termos capitais: a educação pela arte e a educação pela mulher.”
E encerrou o discurso com estas palavras:
“Que diremos, pois, de uma instituição que alia em si, do modo como aqui as contemplamos, a cultura artística e a cultura feminil? Que essa instituição decifrou o segredo do nosso futuro. A política, a imagem da cegueira neste país, vai passando, a magoar a pátria sob a ponteira do seu bordão ferrado, enquanto as questões, de redor, tumultuam, desdobram impunemente os seus estragos, ‘como o fogo nos vales onde sopra o vento’[nota 11: Sófocles, Ájax], para afinal caírem sobre a nação com todo o peso dos seus males imprevenidos, no meio da confusão crescente dos interesses, dos princípios, através da qual parece estridular a ironia maligna do demônio da Divina Comédia, rindo da imprevidência que não conta com a lógica dos fatos. Resta, portanto, à iniciativa individual acordar o país. Neste sentido, o Liceu de Artes e Ofícios é um rasgo de heroicidade moral que inspira aos mais incrédulos uma confiança reanimadora. O nome de Bethencourt da Silva pertence ao número dos beneméritos cuja condecoração incumbe à história. Com ele os seus auxiliares, os entusiastas intrépidos, que se dedicaram à obra deste Evangelho vivo, formam, no horizonte do nosso país, a maior constelação do futuro. Se ‘o mal ensina o mal’ [nota 12: Sófocles, Elektra], praza aos céus que este bem semeie e reproduza indefinidamente a lição de tão esplêndido exemplo. Apoie-se com firmeza no chão popular. Apele com tenacidade para as classes produtoras. Descreia da velhice incurável, estreitando de dia em dia mais a sua aliança com a mocidade, cujo préstimo o Liceu soleniza na homenagem de hoje, com a mocidade, em cujo seio há batalhadores que podem confundir as caducas pretensões da esterilidade encanecida com a réplica de Hémon na tragédia antiga: ‘Se sou jovem, julga-me antes pelas minhas ações do que pelos meus anos’ [nota 13: Sófocles, Antígona]. Deste modo chegareis a consumar vitoriosamente o vosso compromisso; e, quando o país realizar a obra da emancipação contra a ignorância, a pior de todas as servidões, caberá ao Liceu de Artes e Ofícios a glória incomparável de ter assentado a pedra angular de um monumento mais forte do que os séculos.”
Artigo de Ruy disponível em: http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/rui_barbosa/FCRB_RuiBarbosa_ODesenho_e_a_ArteIndustrial.pdf
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*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da ABI. [email protected]
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