O relatório anual da organização suíça Press Emblem Campaign (PEC), divulgado nesta segunda-feira (15), aponta que este ano 128 jornalistas foram assassinados em 32 países durante o exercício da profissão, marca muito próxima do recorde de 2013, que registrou 129. Israel lidera o ranking, enquanto o Brasil ocupa a décima posição. Com sede em Genebra, a organização não-governamental, que atua pela proteção legal e a segurança dos jornalistas em zonas de conflito ou em missões perigosas, reivindica um instrumento internacional para combater a impunidade nos países onde os assassinatos ocorrem. Em nove anos de levantamentos, a PEC registrou 1.038 profissionais mortos. Isso representa 2,4 jornalistas assassinados por semana no mundo.
“O ano que termina foi terrível para os jornalistas. Um novo conflito mortífero para os trabalhadores dos meios de comunicação se abriu na Ucrânia, a ofensiva israelense lançada neste verão em Gaza causou várias vítimas, enquanto na Síria o terror atingiu níveis extraordinários com a decapitação de jornalistas em público”, disse à EFE o secretário-geral da PEC, Blaise Lempen.
Depois de México, Afeganistão, Honduras e Somália, o Brasil aparece na lista com quatro mortos em 2014. Ao lado da República Centro-Africana, o Brasil é o décimo mais perigoso do ano. Neste ano, perderam a vida trabalhando os profissionais Santiago Andrade, da TV Bandeirantes, Pedro Palma, José Lacerda da Silva, da TV Cabo Mossoró, e Geolino Xavier, da TV N3, da Bahia. Desde 2009, porém, o Brasil acumulou 31 mortos entre os jornalistas, o que coloca o país como o sexto mais violento.
Israel é o país com maior número de vítimas. Foram 16 jornalistas mortos durante a ofensiva militar em Gaza. A Síria ocupa o segundo lugar, com 13 profissionais assassinados, enquanto o Paquistão aparece em terceiro. Os dados revelam 12 repórteres mortos, a maior parte deles em áreas tribais próximas ao Afeganistão. A quarta posição dos países mais perigosos é ocupada pelo Iraque, onde foram abatidos 10 jornalistas, muitos deles devido à ofensiva do grupo jiadista Estado Islâmico (EI).
Fora da região, o país mais violento é a Ucrânia, com nove mortos em 2014, seguida do México (oito), Afeganistão (seis), Honduras e Somália (cinco cada). Segundo a entidade, jornalistas russos também foram assassinados. “Os problemas de acesso às zonas de conflito seguem sendo agudos. Muitos meios de comunicação se recusam a enviar jornalistas já que os riscos são muito grandes. Mas, de fato, a cobertura dos conflitos diminui na imprensa, e com isso a pressão da opinião pública para resolver e financiar a indispensável ajuda humanitária”, pondera o secretário-geral da ONG.
*Informações do Portal IMPRENSA, O Tempo e Jornal de Notícias (Portugal)
Entidades brasileiras ligadas ao jornalismo saíram em defesa da liberdade de expressão e repudiaram as agressões e ameaças sofridas pelo repórter Bruno Cassucci, do LANCE!, no último domingo (30) em Santos (SP). Um agente apontou-lhe uma arma enquanto ele fotografava, com o celular, o local em que ocorreria uma briga entre torcedores do Santos e do Botafogo. Mesmo após identificar-se como jornalista, Cassucci foi agredido no rosto e teve uma bomba de efeito moral colocada dentro da calça. Jornalistas criaram abaixo-assinado pedindo punição aos agressores e a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) abriu inquérito ontem (1º) para investigar o caso.
O Diretor Regional do Sindicato dos Jornalistas de Santos, Carlos Ratton, encaminhou um ofício ao coronel PM Ricardo Ferreira de Jesus, Comandante do 6º. BPMI – SP, para pedir providências contra os policiais envolvidos. “Isso é um absurdo e não pode acontecer novamente”, declarou à IMPRENSA. “Diante de toda essa atrocidade, dessa falta de preparo, dessa afronta à cidadania, ao trabalho e a dignidade humana, exijo a punição de todos os policiais que abordaram o jornalista Bruno Cassucci de Almeida, que em visita ao batalhão poderá identificar um por um. Na certeza que esse Comando tomará uma atitude contra esses péssimos exemplos de policiais militares”, diz um trecho do ofício.
Vila Belmiro virou praça de guerra depois do jogo – Foto: LanceNet
Em nota, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) diz que a violência empregada contra o repórter é “injustificada e inaceitável, além de injustificada e inaceitável, um grave atentado à liberdade de expressão”. A Abraji falou sobre o papel da polícia e também exigiu punição aos agressores. “O equipamento de um profissional da imprensa não deve ser alvo de confisco, tampouco seus registros devem ser comprometidos. O episódio deste domingo é característico de contextos autoritários, em que revelar qualquer fato diverso do que o Estado pretende mostrar é considerado crime. O papel da Polícia Militar é proteger cidadãos e garantir à sociedade o direito de acesso a informações de interesse público”.
Na tarde desta segunda (1º/12), também em nota, o diretor executivo da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Ricardo Pedreira, classificou a ação como “vergonhosa”. A entidade ressaltou o despreparo da PM e cobrou uma punição aos policiais. “A agressão que Bruno sofreu, além de ter sido uma violência física absurda e covarde, atinge também aqueles a quem ele buscava levar informações de interesse público. É, portanto, uma agressão à liberdade de expressão. O que se espera agora é que as autoridades investiguem o episódio, identifiquem e punam os culpados”.
Já o presidente da Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo (Aceesp), Luiz Ademar, colocou-se à disposição de Bruno Cassucci. “Sempre mantivemos um bom diálogo com a Polícia Militar e repudiamos qualquer tipo de atitude truculenta. Assim como lutamos para afastar do futebol os torcedores violentos, também não vamos tolerar policiais violentos tentando proibir um jornalista de cumprir a sua função”.
Confronto e agressão
A tensão teve início quando torcedores do Santos tentaram invadir a rua onde estavam os botafoguenses, que também partiram em direção ao time. Durante a briga, foram arremessadas bombas, pedras e paus. Mais tarde, o confronto passou a ser entre a PM e os santistas. A sede da organizada Sangue Jovem, na rua Paisandú, ao lado do estádio, foi invadida e várias pessoas ficaram feridas.
Bruno Cassucci foi detido, revistado e agredido sob a mira de uma arma quando tentava se aproximar do local para registrar o incidente. Um policial pegou o celular e apagou todas as imagens, enquanto o colega pegou uma bomba de efeito moral, colocou dentro da calça dele e ameaçou liberá-la. Em seguida, o PM solicitou um documento do jornalista, que foi liberado dez minutos depois com a condição de que não retornasse.
Polícia invadiu a sede da torcida do Santos e destruiu materiais – Foto: reprodução/LanceNet
Em seu perfil no Facebook, ele relatou o episódio que classificou como “o pior dia” de sua carreira jornalística e “um dos piores” da sua vida. “Escrevo aqui não para fazer juízo de valor, nem generalizar uma classe que sei que é mal paga, mal equipada e que deveria servir a uma sociedade que em boa parte lhe detesta. Como jornalista, acredito que não há opinião sem informação, e é por isso que venho aqui relatar o que vivi na tarde desse domingo”, justificou.
O jornalista conta que no momento em que o PM apagava as imagens que registrou, outra autoridade pediu que ele não olhasse para trás. Instintivamente, ele desobedeceu a ordem e foi agredido no rosto. Carsucci tentou argumentar mais de duas vezes que estava apenas exercendo seu trabalho, mas não adiantou.
Outro oficial se aproximou e disse que ele estava ali para “defender torcedor” e que a imprensa apenas mostrava quando a polícia bate “nesses caras”. “A minha intenção era exatamente outra, ouvir algum responsável pela operação para tentar entender o que estava acontecendo”, alegou. “Saber que todos os dias abusos desse tipo e outros muito piores acontecem com gente que não sabe ou não tem como se expressar é o que preocupa. Sei de todos os privilégios que tenho por ser branco, não viver na periferia e ter tido a oportunidade de estudar. Se passo por situações como essa, com certeza há quem viva coisa muito pior diariamente”, finalizou.
*Informações do Portal Imprensa, Lance!Net e Abraji.
Doze anos após o assassinato bárbaro do jornalista Tim Lopes, da TV Globo, outro profissional da imprensa foi vítima de traficantes do Complexo do Alemão enquanto fazia uma reportagem. Henrique Soares, do site G1, foi agredido nesta segunda-feira (10) por bandidos na comunidade Nova Brasília, enquanto fazia uma reportagem sobre falta de moradias e invasões. Henrique, que levou vários pontos na cabeça por conta das coronhadas, foi libertado pelos criminosos com a chegada de militares da UPP. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro (SJRJ), a Associação Brasileira de Imprensa, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) repudiaram em nota a agressão contra o repórter e exigem justiça.
Soares foi vítima de agressões praticadas por homens armados enquanto apurava dados sobre o déficit habitacional na Avenida Itaoca, no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro (RJ), onde ocorria uma operação policial. Depois de ser confundido com um policial a paisana, o jornalista foi sequestrado e levado para dentro do galpão de uma antiga fábrica invadida por moradores. Durante 40 minutos, ficou refém dos traficantes, foi espancado com um pedaço de pau e levou coronhada na cabeça. Ele foi libertado após a aproximação de PMs e dos apelos de representantes da associação de moradores do local.
Complexo do Alemão visto a partir do teleférico – Foto: Bruno Itan/Coletivo Alemão
O jornalista recebeu pronto atendimento médico, levado inicialmente para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e depois para um hospital particular. Ele também registrou queixa na polícia, onde identificou um de seus agressores, de acordo com a 45ª Delegacia de Polícia (Complexo do Alemão). O suspeito Robson Corrêa Barreto, de 20 anos, foi preso em flagrante pelos crimes de sequestro e cárcere privado qualificado, lesão corporal grave e furto qualificado. As investigações continuavam em andamento para tentar identificar outros três homens.
A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) repudiou em nota as agressões “por entender que atos de violência dessa natureza afrontam o livro exercício da atividade jornalística e ofendem o Direito Constitucional de manter a população informada sobre casos de interesse público”. A entidade ressaltou ainda a gravidade do episódio, tendo em vista que ocorreu em uma área sob controle das autoridades policiais. “A ABI espera que o Governo do Estado apure a violência cometida contra o jornalista, identificando e punindo os culpados, além de restabelecer a ordem a que a população tem direito de acordo com a Lei”, assina o presidente Domingos Meirelles.
O Sindicato dos Jornalistas do Rio disse que verificará se foram observadas as 16 recomendações de segurança elaborada pelo Ministério Público do Trabalho. “O Sindicato exige apuração rigorosa das circunstâncias do crime, com a identificação e responsabilização criminal dos agressores”, acrescentou. O caso será levado hoje para audiência pública, da Escola de Magistratura, para debater a segurança dos jornalistas.
O presidente da Fenaj, Celso Schröder, expressou solidariedade ao jornalista e cobrou providências na apuração do crime e das empresas na garantia de segurança aos profissionais. “Nós temos alertado constantemente sobre a crescente violência contra jornalistas no Brasil. Felizmente, ao que soubemos, Henrique está se recuperando bem, mas o caso poderia ter uma gravidade maior. É imprescindível que os governos promovam políticas públicas que assegurem o direito ao exercício profissional do jornalismo e a adoção de um protocolo de segurança no qual as empresas garantam condições de trabalho aos profissionais em coberturas de risco”, afirmou.
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) também divulgou nota em que manifesta solidariedade ao repórter e cobra o esclarecimento do caso. “A Abraji considera fundamental que os responsáveis por tal brutalidade sejam rapidamente identificados e punidos de acordo com o que a lei determina. É essencial, ainda, que o governo estadual tenha total transparência na apuração do caso”, diz o documento.
O secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, determinou empenho na identificação e prisão dos acusados. “A Secretaria de Segurança considera inadmissível qualquer ameaça à liberdade de imprensa”, diz nota enviada pelo órgão. “Pela gravidade, é preciso que haja um movimento forte de pressão política para exigir mais segurança do governo em garantir a liberdade de expressão que está sob ameaça”, alerta o cientista político e assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional, Maurício Santoro.
(New York Times via Folha de S.Paulo) – James Foley voltou para a cela que dividia com mais de 20 outros reféns ocidentais e explodiu em lágrimas de alegria. As perguntas que seus sequestradores haviam acabado de fazer eram tão pessoais -Quem chorou no casamento do seu irmão? Quem era o capitão do seu time de futebol no colégio?- que Foley teve certeza de que finalmente eles haviam estabelecido contato com a sua família.
Foley teria sido obrigado a recitar ameaças contra os Estados Unidos antes de ser decapitado, como mostra o vídeo divulgado em meados de agosto
Era dezembro de 2013, e mais de um ano se passara desde que Foley, jornalista de 40 anos, havia desaparecido no norte da Síria. Finalmente, seus pais souberam que ele estava vivo, e seu governo, acreditava ele, em breve negociaria a sua libertação. O que parecia ser um ponto de inflexão foi, na verdade, o início de uma espiral descendente que terminou em agosto, quando ele, após ser forçado a se ajoelhar em alguma colina descampada da Síria, foi decapitado diante de uma câmera.
A história do que aconteceu na rede subterrânea de prisões do Estado Islâmico na Síria é de um sofrimento excruciante. Foley e outros reféns foram espancados e submetidos a afogamentos. Passaram fome e foram ameaçados de execução por um grupo de combatentes. Em seguida, foram entregues a outros, que lhes trouxeram doces e cogitaram libertá-los. Os prisioneiros se uniram, jogavam para passar as horas sem fim, mas, à medida que as condições se tornavam mais desesperadoras, eles se voltaram uns contra os outros. Alguns, como Foley, procuraram conforto na fé de seus captores.
O cativeiro de Foley coincidiu com a ascensão da facção que viria a ser conhecida como Estado Islâmico, criada a partir do caos da guerra civil síria. Ela não existia quando Foley foi sequestrado, mas lentamente cresceu para se tornar o movimento rebelde mais poderoso e temido na região. No segundo ano de seu cativeiro, os combatentes já acumulavam mais de 20 reféns e haviam concebido uma estratégia para trocá-los por dinheiro. Ele era um entre pelo menos 23 reféns ocidentais de 12 países, a maioria de nações com histórico de pagamento de resgates por seus cidadãos. Com o tempo, a jornada de cada refém começou a divergir em razão das reações de Washington, Paris, Madri, Roma e outras capitais aos sequestros.
CAPTURADOS NUM CYBERCAFÉ
Dois anos atrás, em Binesh (Síria), Foley e o fotojornalista britânico John Cantlie estavam indo para a Turquia quando pararam em um cybercafé para enviar seus trabalhos. Um homem entrou, segundo relata Mustafa Ali, tradutor sírio que acompanha ocidentais. “Ele não sorriu nem disse nada. Olhou para nós com maldade nos olhos.” O homem “foi até o computador e se sentou por apenas um minuto”, disse Ali.
EI continua usando jornalista John Cantlie para fazer ameaças e demonstrar que áreas são controladas pelo grupo – Foto: Reprodução/Youtube
Foley, freelance americano que colaborava com o GlobalPost e a agência France Presse, e Cantlie, fotógrafo de jornais britânicos, continuaram transmitindo seus arquivos, segundo Ali, cujo relato foi corroborado por e-mails que os jornalistas enviaram naquele dia. Mais de uma hora depois, eles chamaram um táxi para percorrer os 40 km até a Turquia. Mas nunca chegaram. Os pistoleiros que saíram ao encalço do táxi não se intitulavam Estado Islâmico, porque esse grupo ainda não existia em 22 de novembro de 2012, o dia em que os dois homens foram capturados.
Sequestros realizados por grupos de combatentes que disputavam influência na Síria se tornaram mais frequentes desde então. Em junho de 2013, quatro jornalistas franceses foram feitos reféns. Em 4 de agosto do mesmo ano, o tradutor sírio Yosef Abobaker ajudou o jornalista americano Steven J. Sotloff a entrar no país. “Eles devem ter tido um olheiro na fronteira que viu meu carro e disse a eles [sequestradores] que eu estava a caminho”, disse Abobaker, que foi libertado duas semanas depois.
Em outubro, Peter Kassig, 25, técnico de emergência médica oriundo de Indiana, foi sequestrado em um posto de controle. Em dezembro, Alan Henning, taxista britânico que havia comprado uma ambulância na esperança de se juntar a uma caravana de ajuda, desapareceu em outra barreira de controle. Fazia meia hora que ele havia entrado na Síria.
Com a guerra civil, um crescente número de combatentes estrangeiros havia inundado a Síria, sonhando em estabelecer um “califado”. Esses jihadistas, muitos deles veteranos da “sucursal” da Al Qaeda no Iraque, tinham aparência e comportamento diferente dos rebeldes moderados. Eles usavam barbas compridas. Falavam com sotaques estrangeiros, do golfo Pérsico, do norte da África, da Europa e de outros lugares.
UM AMERICANO CHAMADO ABU HAMZA
“Dava para ver as cicatrizes nos tornozelos dele”, disse o belga Jejoen Bontinck, 19, que dividiu cela com Foley em Aleppo por três semanas, em meados de 2013. “Ele me contou como haviam acorrentado os pés dele a uma barra, que depois penduravam para que ele ficasse de cabeça para baixo”, disse Bontinck, que se converteu ao islã. “Aí o deixaram lá.”
Bontinck, que foi libertado no ano passado, está agora sendo julgado por suspeita de pertencimento ao grupo terrorista. Ele disse que, durante o tempo em que estiveram juntos, ele, Foley e Cantlie ficavam de pé sempre que escutavam o chamado à oração. Foley já havia se convertido ao islamismo logo após sua captura, adotando o nome de Abu Hamza, segundo Bontinck. Essa versão foi confirmada por outras fontes. “Eu recitava o Alcorão com ele”, disse Bontinck. “A maioria das pessoas diria: ‘Vamos nos converter para podermos ter um tratamento melhor’. Mas, no caso dele, acho que era sincero.”
Poucos reféns se mantiveram fiéis às suas próprias religiões, incluindo Sotloff, então com 30 anos, judeu praticante. Reféns recém-libertados contaram que, diferentemente dos prisioneiros sírios, que ficavam acorrentados a radiadores, Foley e Cantlie podiam se movimentar livremente em sua cela.
Bontinck disse que perguntou ao emir da prisão, um cidadão holandês, se os militantes haviam pedido algum resgate pelos estrangeiros. Ele disse que não. “Explicou que havia um plano A e um plano B”, disse Bontinck. Os jornalistas seriam colocados sob prisão domiciliar ou então recrutados para um campo de treinamento jihadista. Quando Bontinck foi solto, pensou que os jornalistas logo seriam libertados.
SURGE UM ESTADO TERRORISTA
O grupo extremista frequentemente realiza execuções nas áreas em que controla, afirmando que está fazendo justiça e alertando os moradores a obedecerem à organização – Foto: BBC
A guerra civil síria, anteriormente dominada por rebeldes laicos e alguns grupos jihadistas rivais, estava se alterando de forma decisiva, e o novo grupo extremista havia assumido uma posição dominante. Em algum momento do ano passado, o contingente de Aleppo jurou lealdade ao então denominado Estado Islâmico no Iraque e na Síria. Outras facções armadas uniram forças ao grupo, que assim começou a acumular prisioneiros. Em janeiro, havia pelo menos 19 homens em uma cela de 20 metros quadrados, e quatro mulheres numa cela contígua. Todos, exceto um, eram europeus ou norte-americanos.
Mais preocupante foi o fato de os guardas francófonos serem substituídos por outros que falavam inglês. Foley os reconheceu como sendo os mesmos que o haviam chamado de “desobediente” durante as piores torturas em um local anterior. Os reféns os apelidaram de “Beatles”.
Os guardas instituíram um rigoroso protocolo de segurança. Quando se aproximaram da cela onde estava o fotojornalista polonês Marcin Suder, eles gritaram “arba’in”, o número 40 em árabe. Era a senha estabelecida para que o refém se voltasse para a parede, permitindo que os guardas entrassem sem que seus rostos fossem vistos pelo prisioneiro. Depois de meses mantendo reféns sem fazer exigências, os jihadistas elaboraram um plano para o resgate deles.
TRIAGEM E NEGOCIAÇÕES
Em dezembro, os militantes haviam trocado vários e-mails com familiares de Foley e dos demais reféns. Após as primeiras perguntas para uma prova de vida, Foley ficou esperançoso de que em breve estaria em casa. Como o seu segundo Natal longe de casa se aproximava, ele organizou uma troca de presentes, algo tradicional na família Foley. Cada prisioneiro deu ao outro um presente montado a partir do lixo. Foley recebeu um círculo feito com a cera de um toco de vela, para amortecer a testa quando se inclinasse para orar.
Conforme as semanas se passavam, Foley notou que seus companheiros de cela da Europa continental eram repetidamente chamados a sair para responder perguntas. Mas os norte-americanos e britânicos, não. Logo os prisioneiros perceberam que os sequestradores haviam identificado quais nações estavam mais propensas a pagar resgates, segundo um ex-refém. “Os sequestradores sabiam quais países seriam os mais propícios às suas exigências e criaram uma ordem baseada na facilidade com que eles julgavam que poderiam negociar”, disse um deles. “Começaram com os espanhóis.”
À medida que as negociações sobre os prisioneiros espanhóis progrediam, os militantes se voltaram para os quatro jornalistas franceses. Os prisioneiros europeus passaram a gravar vídeos que seriam enviados às suas famílias e seus governos. Esses vídeos acabaram incluindo ameaças de morte e prazos para a execução, num esforço dos prisioneiros para obrigar suas nações a fazer os pagamentos.
Em um dos vídeos, os militantes colocam em fila os reféns franceses com berrantes uniformes laranja, imitando os trajes que os EUA dão aos seus prisioneiros na base de Guantánamo, em Cuba. Os sequestradores também começaram a praticar o “waterboarding” (afogamento simulado) em um grupo seleto, da mesma forma como os interrogadores da CIA haviam tratado prisioneiros muçulmanos durante a gestão de George W. Bush, contam ex-reféns e testemunhas.
Os três norte-americanos e os três britânicos foram escolhidos para o pior abuso, tanto por causa das insatisfações dos militantes contra seus países quanto pelo fato de Washington e Londres se recusarem a negociar. A pessoa que sofreu o tratamento mais cruel, segundo ex-reféns, foi Foley. Ele foi repetidas vezes submetido a execuções simuladas e ao “waterboarding”, que pode levar a vítima a desmaiar. “Quando não havia sangue”, disse um ex-colega de cela, “sabíamos que ele havia sofrido algo ainda pior”.
Em um porão, a única iluminação para os reféns era a fresta de luz solar que se filtrava sob a porta. Na maioria dos locais havia poucos cobertores e nenhum colchão. Alguns dos prisioneiros pegavam calças velhas, amarravam a ponta e enchiam as pernas das calças com trapos, criando travesseiros improvisados. Os prisioneiros começaram a se desentender. Brigas irromperam.
Foley compartilhava suas parcas rações e ofereceu seu único cobertor a outro prisioneiro. Mantinha os demais entretidos, propondo atividades como o Risco, um jogo de tabuleiro que consiste em deslocar Exércitos imaginários sobre um mapa.
DESTINO SELADO
Já no primeiro semestre deste ano, os reféns foram transferidos para Raqqa, capital do autodeclarado califado do Estado Islâmico. Foley observou como seus companheiros de cela eram libertados mais ou menos a cada duas semanas. Era difícil se manter esperançoso, mas Foley, que fez campanha para o presidente Barack Obama, continuou acreditando que seu governo viria em seu socorro, segundo sua família, que ficou sabendo disso pelos reféns recém-libertados.
Duas semanas depois da divulgação da decapitação do jornalista norte-americano James Foley, o Estado Islâmico cumpriu sua ameaça e acabou com a vida do também repórter Steven Joel Sotloff
Em 27 de maio, os poucos reféns remanescentes foram lembrados de que diferentes passaportes prenunciavam diferentes destinos. Os que haviam sido capturados juntos eram, geralmente, libertados juntos. Mas não foi assim para dois trabalhadores humanitários, um italiano e outro britânico, a serviço da pequena ONG francesa Agência de Cooperação Técnica e Desenvolvimento. Eles haviam sido capturados perto da fronteira com a Turquia, depois de distribuírem barracas num campo de refugiados.
No final de maio, o italiano Federico Motka soube que poderia sair, de acordo com um companheiro de cativeiro, supostamente depois de a Itália pagar um resgate -o que Roma nega ter feito. Mas seu colega britânico, David Cawthorne Haines, foi decapitado em setembro.
Quinze reféns foram soltos entre março e junho, graças a resgates no valor médio de € 2 milhões (R$ 6 milhões) por cada refém, segundo os ex-cativos e pessoas próximas a eles. Em junho restavam apenas sete prisioneiros -quatro americanos e três britânicos, ou seja, todos eles cidadãos de países cujos governos se recusaram a pagar resgates. Em um artigo publicado recentemente numa revista oficial do Estado Islâmico, os jihadistas descrevem os ataques aéreos comandados pelos EUA desde agosto como o fato que selou o destino dos reféns.
Em agosto, quando os militantes foram buscar Foley, o fizeram calçar sandálias de plástico. Eles o levaram de carro até uma colina sem vegetação nos arredores de Raqqa. Obrigaram-no a se ajoelhar. Ele olhou diretamente para a câmera, com expressão desafiadora. Em seguida, eles cortaram sua garganta. Duas semanas depois, apareceu no YouTube um vídeo semelhante, mostrando a morte de Sotloff. Em setembro, os militantes colocaram a execução de Haines na internet. Em outubro, mataram Henning.
Em toda a Europa, os que haviam sobrevivido engoliram em seco ao verem as imagens da morte de Foley: os chinelos de plástico barato que apareciam ao lado do corpo eram o mesmo par que os demais prisioneiros haviam compartilhado na prisão.
*Por RUKMINI CALLIMACHI para o New York Times. Título original: “Antes de serem mortos, reféns foram torturados e enganados pelo Estado Islâmico”.