“Se você gritar, eu te mato aqui mesmo”. Essa foi uma das frases ouvidas pela haitiana Martine Gestimé de um militar brasileiro, enquanto era estuprada dentro da base militar, em Porto Príncipe, capital do Haiti. A história de Martine está descrita no livro reportagem “Aquilo que resta de nós” (Páginas Editora), do jornalista Igor Patrick. Escrita em 10 dias, a publicação de 146 páginas é o resultado de uma investigação que durou sete meses. Igor viajou ao país como correspondente da agência de notícias russa Sputnik, para cobrir o final da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do país, a Minustah. Além do drama de Martine, a obra traz os relatos de outras haitianas vítimas da violência: Jacquendia, Régine e Fabiana. Com vidas marcadas pela miséria, em um país destroçado, física e simbolicamente como nação, elas têm em comum a luta pela sobrevivência.
A violência sofrida por elas é mais um capítulo de um cenário trágico, onde militares foram convocados para promover a paz, mas distribuíam o horror. “Uma delas foi estuprada por um soldado brasileiro; outra, por um jordaniano; a terceira, por um nigeriano; e a última, por um africano, que ela nem sabe o país”, conta o autor. Cada página apresenta ao leitor, com riqueza de detalhes, o antes dessas mulheres, repleto de sonhos e desejos de uma vida mais justa. Mas, após os abusos, elas conheceram a crueza do pós-violência sexual, que trouxe o trauma, a culpa, a hostilidade dos familiares e o abandono das vítimas grávidas por seus algozes.
As quatro sobreviventes foram obrigadas a criar os filhos resultantes de seus estupros. No Haiti, o aborto é uma prática proibida pelo código penal. As mulheres podem ser presas e o profissional de saúde que realiza o procedimento pode ser obrigado a trabalhos forçados, situação que acaba obrigando muitas a levar a gravidez até o fim, mesmo quando em consequência de atos criminosos. Além disso, até 2008, a lei haitiana não permitia que crianças sem pais declarados fossem registradas. Com isso, aquelas que nasceram até então – como a filha de 9 anos de uma das personagens, estuprada pelo jordaniano – estão num limbo jurídico, sem documentos e sem existir oficialmente. “O que vemos no livro é a história de mulheres que, fragilizadas pela pobreza, foram alvo de soldados que deveriam promover a paz e a segurança. No lugar da ajuda, veio o estupro”, diz Igor Patrick.
O jornalista entrou em contato com o Ministério da Defesa sobre a denúncia feita pela sobrevivente Martine Gestimê contra o soldado brasileiro no livro. Dez dias depois, recebeu uma nota oficial sobre o orgulho do Exército nacional em não ter nenhum soldado na lista dos investigados da ONU. “Entrevistei o embaixador, e ele não quis entrar no mérito do caso contra o soldado brasileiro, porque a vítima diz ter sido atraída para a base militar nacional com a promessa de um pacote de biscoitos e estuprada ali dentro. Segundo ele, se isso fosse investigado e comprovado, ele precisaria de orientações do Itamaraty porque não tinha precedentes sobre o que fazer a respeito”, revela Patrick.
Ele entrevistou várias mulheres haitianas que afirmam ter sido violentadas por brasileiros e, chegou, inclusive, a tentar ajudar uma delas – uma menina de 16 anos que foi violentada e já tem uma filha de 3 anos – mas descobriu por que quase nenhuma sobrevivente denuncia o crime. “O embaixador não aceita recebê-la porque estaria corroborando a denúncia. O advogado mais barato cobra US$ 200 só para ouvir o caso – de uma mulher que não tem dinheiro para comer”.
Os direitos autorais do livro foram integralmente revertidos para a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), que atua no Haiti prestando trabalhos de emergência pediátrica, obstetrícia, prevenção e tratamento da cólera e acompanhamento emergencial para vítimas de abuso sexual no país.
Legado de violência
Soldados brasileiros desembarcaram no Haiti, em 2004, para liderar tropas de diversas nações da Minustah. Após 13 anos, eles retornam ao Brasil como corresponsáveis por uma ação que deixou para o Haiti um legado de mais de 30 mil mortos, em decorrência da cólera, e mais de duas mil vítimas de abusos sexuais, entre outras violências. A missão de paz, encerrada pela ONU no último domingo (15), chegou a reunir em território haitiano 20 mil militares de várias nacionalidades, como Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Filipinas, Guatemala, Indonésia, Jordânia, Nepal, Paraguai, Peru, Sri Lanka e Uruguai.
“A Minustah também fez muita violência contra os estudantes, contra os pobres que moram nas favelas. Estupraram as mulheres, os homens. Cometeram muita violência contra as pessoas no país e também trouxeram a epidemia de cólera. Foi um desastre muito grave feito pela ONU”, afirmou em entrevista ao Brasil de Fato o membro do partido Encontro dos Socialistas, Guerchang Bastia.
Em uma ação muito criticada, soldados brasileiros entraram na favela de Cité Soleil, habitada por 200 mil pessoas, e cometeram o que os haitianos consideram ser um massacre. Pelo menos 27 civis morreram durante a ação, sendo que 20 eram mulheres com menos de 18 anos. Bastia conta que o episódio é considerado um ensaio para as ações comandadas pelo Exército brasileiro nas favelas do Rio de Janeiro: “Os soldados brasileiros mataram muitas pessoas nas favelas do Haiti. Entendemos, porque o Brasil tem favelas, então, eles se preparam para lutar contra os pobres e, para isso, experimentaram essas novas estratégias nas favelas no Haiti”.
O cenário de violações será denunciado no Tribunal Popular que está organizando ações em todo o país para denunciar a ocupação. O Tribunal Popular, iniciado em julho, vai realizar atividades em todo o Haiti até 2018. As denúncias serão importantes para mensurar quantas pessoas morreram pelas mãos da Minustah, já que não há nenhum balanço efetivo das Nações Unidas com esses dados.
*Com informações de Jeff Lorentz para o portal Bhaz, jornal O Tempo e site Brasil de Fato.