O brasileiro Ruy Barbosa (1849-1923), jornalista, jurista, político, abolicionista e republicano, ficou famoso tanto pela inteligência como pelo corpo que o distinguiram desde criança. Franzino e de baixa estatura, Ruy se destacava pelo crâneo avantajado, sobretudo devido ao contraste com o resto do corpo. A trajetória dele revela que essas características não o perturbavam. Nu, diante do espelho, imagino que aprendeu a admirar-se e respeitar-se como ninguém mais poderia fazer igual.
Ele foi caricaturado por tantos que esse tesouro iconográfico moveu o pesquisador cearense Herman Castro Lima (1897-1981) a publicar Rui e a caricatura (Rio de Janeiro: Olímpica, 1950). Na página de rosto dessa obra, o autor distinguiu a famosa obra do capixaba Antonio Belisário Vieira da Cunha (1886-1956) denominada “O maior coco da Bahia”. Essa caricatura de Ruy, mix de fruto e rosto humano, foi publicada na revista humorística O Malho em 08abr1919.
Este artigo, que ora você lê, gira em torno da famosa caricatura e se apoia nas figuras ímpares de Antonio Belisário Vieira da Cunha e de Herman Lima; o primeiro era mais velho que o segundo cerca de 11 anos e, por certo, conheceu a opinião de Lima sobre “O maior coco da Bahia”. Não localizei, ainda, a opinião de Ruy Barbosa a respeito. Ele, quando O Malho publicou a caricatura, estava ativo e em campanha, a quarta, para ocupar a presidência da República.
Vieira da Cunha e o modernismo
A ilustração de 1919, apesar de publicada três anos antes, é ícone da Semana Moderna de 1922, porque o artista capixaba é autor de reflexões sobre os rumos no sentido da afirmação da cultura nacional. A propósito, localizei a dissertação da professora Vanessa Pereira Vassoler, submetida ao Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (Vitória: PPGA/UFES, 2018), cujo título traduz o que informo no início do parágrafo: “Vieira da Cunha: o paladino capixaba da arte brasileira”.
Antônio Belisário Vieira da Cunha nasceu em família que detinha posse, prestígio e poder. Seu pai, o médico Belisário Vieira da Cunha, era proprietário da Fazenda Prosperidade, próxima da sede municipal de Cachoeiro do Itapemirim. Leitor do periódico carioca O Malho, o jovem Antonio Belisário criou seu próprio periódico, O Martelo, e o manteve em circulação entre 1906 e 1910, publicando na sua terra natal seus primeiros desenhos. Dali seguiu para o Rio de Janeiro, onde firmou nome e colaborou em jornais e revistas, tendo retornado ao Espírito Santo e publicado novos periódicos.
O jornalista Ruben Gill (1900-1980) dedicou ao caricaturista Vieira da Cunha página – a 8ª – na série “O Século Boêmio” que publicou no jornal carioca Dom Casmurro (consultei a obra na Hemeroteca Digital da FBN em 08mai2021). Na capa da edição de 12dez1942, Gill traça longo perfil do caricaturista e acentua a contribuição que deu ao movimento modernista brasileiro:
“Vieira da Cunha deve ser reconhecido, ou melhor, precisa ser proclamada a sua qualidade de precursor do movimento de renovação operado nas letras e artes, em 1922. Dizemos ser proclamado porque Graça Aranha reconheceu haver partido desse artista intelectual a campanha modernizadora do espírito da obra e dos processos dos cultivadores das artes plásticas nacionais. Antes de mais, é de recordar o leitor como no anos de 1919 o deputado Maurício de Lacerda leu da tribuna da Câmara, e fez incluir nos anais da Congresso, os trechos principais do artigo de Vieira da Cunha publicado na Revista Nacional, com ilustrações de Correia Dias, ponderando a urgência de libertar a arte brasileira da sujeição em que vivia não só nos cânones como nos ‘motivos’ e até detalhes de suas composições, servilmente copiados ao estrangeiro e ao passado cosmopolita, o que lhe parecia ainda pior”.
Vê-se, pois, que “O maior coco da Bahia” estava cercado do melhor que existia na época.
Herman Lima
Por algum tempo mantive a certeza de que o escritor Herman Lima, autor da clássica História da caricatura no Brasil, era baiano. Os quatro volumes dessa obra foram publicados em 1963 pela editora carioca José Olympio. Meu equívoco se deveu ao fato de que esse autor cearense estudou e se formou na Faculdade de Medicina, em Salvador. Ele é reconhecido como um dos grandes contistas brasileiros. Era funcionário concursado do Ministério da Fazenda e integrou, no Rio de Janeiro, o gabinete de Getúlio Vargas durante o Estado Novo.
A respeito do autor, sugiro a consulta ao vídeo editado pela TV Assembleia do Ceará em outubro de 2020.
Herman Lima publicou Rui e a caricatura, citado no início deste texto, e tratou da ênfase que os caricaturistas deram à macrocefalia de Ruy Barbosa. Ao tratar da famosa obra de Vieira da Cunha – “O maior coco da Bahia” –, o estudioso alerta que no ano anterior, na edição 14ago1918 de O Malho, o caricaturista e compositor baiano Sá Róris (José Ruy de Sá Roriz, 1887-1975), que colaborou com o periódico humorístico soteropolitano Foia dos Rocêro, fundira fruto e feições humanas para colar à figura de Ruy Barbosa fruto que lembra a Bahia.
Enfim, Herman Lima, na página pré-textual XXI do seu livro explica que a caricatura “O maior coco da Bahia” é:
(…) “Um simples círculo que é sublinhado pela curva do bigode e dos aros do pincenê específico e a legenda – “o maior coco da Bahia” – só isso, e de nada mais se precisa para se ter, no mesmo relance de entendimento, a terra admirável da primeira missa e a primeira de amor brasileiro, a sua glória tropical ao permanente louvor na voz do povo – e a glória do seu filho, ele é o maior de todos – doce, rico, emoliente coco da Bahia e o coco do Rui, a cabeça, o cérebro, a órbita do seu pensamento, miraculosa esfera onde morava Deus, pelo Verbo”.
Divino Ruy, rogai por nós!
*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da ABI. [email protected]
Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).
A vacinação dos profissionais de imprensa de Salvador foi retomada nesta segunda (07), Dia Nacional da Liberdade de Imprensa, das 8h às 17h, em todos os postos de vacinação da capital baiana. A Secretaria Municipal da Saúde garantiu também a montagem do posto exclusivo para jornalistas e radialistas na sede da Associação Baiana de Imprensa, na Praça da Sé, como ocorreu na última sexta-feira (4). Mais de 150 trabalhadores da notícia já passaram pela sede da ABI, para receber a primeira dose do imunizante contra a Covid-19.
Nesta terça-feira (8) a Secretaria Municipal da Saúde realiza o mutirão de vacinação por idade, para pessoas de 53+. Por isso, a vacinação dos profissionais de imprensa será retomada na quarta-feira (9) em todos os postos (até 17h) e também na sede da ABI (até 16h).
Desde o final de maio, a partir de uma intensa campanha conjunta do Sinjorba, Sinterp e ABI, vários municípios da Bahia organizam seus planos de vacinação para contemplar os profissionais de imprensa, que estão expostos aos riscos de contrair, em suas atividades diárias, o novo Coronavírus. Localidades como Lauro de Freitas, Alagoinhas, Senhor do Bonfim, Bom Jesus da Lapa, Maragojipe, Serrinha, entre outras, já estão com trabalhadores da comunicação social em suas listas de vacinados.
Em cada cidade, há definição de critérios para a vacinação. Em Feira de Santana, segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), a primeira etapa de imunização para profissionais de imprensa determina que sejam para aqueles acima de 40 anos e que atuem na linha de frente realizando coberturas externas.
O Sinjorba informa que mais de 2.000 cadastros foram realizados até agora em toda a Bahia. A checagem é feita individualmente, “garantindo que tudo seja verificado antes dos nomes serem repassados”, explica a entidade. Por enquanto, estão recebendo a primeira dose os profissionais com mais de 40 anos e em pleno exercício profissional, comprovado com os documentos solicitados pela Prefeitura (veja abaixo). Após o pré-cadastramento em https://bityli.com/TrvOG (Sinjorba) e verificação das informações fornecidas, as listas são enviadas à SMS, que faz a liberação no seu sistema. É possível verificar se a vacinação já foi liberada no link https://bit.ly/3z0XyPD.
Mesmo aqueles colegas com menos de 40 anos que preencheram o pré-cadastro já estão tendo a documentação complementar solicitada, para que o processo seja agilizado quando novas faixas etárias forem liberadas.
No ato da vacinação, o profissional de imprensa deverá comparecer levando:
1) Documento oficial de identificação com foto; 2)Documento comprobatório do trabalho presencial, atual: último contracheque ou nota fiscal do serviço prestado (ou contrato PJ ou carta da chefia); 3)Documento comprobatório do exercício profissional (pelo menos um deles):
Cópia impressa do certificado de conclusão de curso/diploma, ou
Registro da SRTE (Secretaria Regional do Trabalho e Emprego, antiga DRT), ou
Identidade profissional válida (carteira da Fenaj, por exemplo), ou
Carta da empresa que trabalha (modelo abaixo).
OBS: Épreciso levar ORIGINAL e CÓPIA IMPRESSA de todos os três documentos. Antes de sair de casa, é importante TER CERTEZA que seu nome já foi atualizado no sistema da Prefeitura.
INFORMAÇÕES IMPORTANTES:
1 – O Sinjorba está realizando o pré-cadastro da categoria desde o dia 14 de maio. Já foram enviados mais de mil nomes de profissionais aptos para a vacinação em toda a Bahia.
2 – O Sindicato está gerenciando os dados, mas não exerce controle sobre a atualização do sistema da Secretaria da Saúde. É necessário aguardar.
3 – Se você já preencheu o cadastro, não repita o processo. A duplicidade do registro gera atraso no envio dos dados para a Secretaria da Saúde.
4 – Não serão vacinados os colegas cujos nomes não constem na lista da Secretaria Municipal da Saúde (link na bio). Logo, confira se o seu nome está na lista antes de se dirigir a um dos postos de vacinação.
5 – Atenção na hora de preencher os dados. Há erros desde data de nascimento até nome escrito com abreviação. A secretaria do Sindicato está enviando emails para os profissionais corrigirem as informações, o que atrasa o cadastro.
6 – Os profissionais precisam ter mais de 40 anos no ato da vacinação. Se você informou a data de nascimento errada e não atende a esse critério, não haverá liberação na hora da conferência do documento de identificação.
7 – A ABI funciona como mais um posto de vacinação para a categoria. Encerraremos nesta sexta, às 15h30, com retomada na segunda-feira, a partir das 8h. Qualquer mudança, por decisão dos órgãos da Saúde, informaremos.
OBS: A ABI está definida como posto de vacinação SOMENTE para a categoria. A população deve continuar se dirigindo aos outros postos.
Local de vacinação: Sede da ABI – 2º andar do Edifício Ranulfo Oliveira, na Rua Guedes de Britto, 1 – Praça da Sé (prédio onde funciona a Prefeitura Bairro Brotas-Centro)
Uma abordagem policial filmada de forma acidental causou revolta nas redes sociais. Nas imagens, o youtuber Filipe Ferreira gravava manobras de bicicleta para o seu canal no Youtube quando foi abordado por policiais (vídeo), no Distrito Federal, no último sábado. Ao questionar o motivo da ação, o jovem negro recebeu respostas ríspidas, xingamentos, teve armas apontadas contra si e foi algemado com as mãos para trás, porque, segundo os PMs, aquele era o “procedimento”. Um dos agentes interrompe o vídeo na sequência. O tratamento dado ao atleta provocou debates sobre abuso de autoridade e os limites da atuação da força policial, além de reflexões sobre desigualdades raciais no Brasil. Rotineiramente, jovens de regiões periféricas são abordados de forma violenta e quem se atreve a filmar ações da polícia, seja profissional da imprensa ou não, precisa enfrentar ameaças e tentativa de impedimento do registro.
Afinal, é proibido filmar? Em conversa com especialistas, a reportagem da Associação Bahiana de Imprensa apurou o que diz a legislação sobre a filmagem de ações policiais, abordou a Lei de Abuso de Autoridade e a necessidade de estabelecer limites à atuação de agentes da segurança pública.
A ABI já se reportou à Secretaria da Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP-BA) em diversas oportunidades, sobre reações violentas que podem ser enquadradas como abuso de autoridade, envolvendo policiais e profissionais de imprensa ou cidadãos que registravam operações policiais. (ver levantamento feito pela ABI)
Em agosto de 2017, uma reportagem da ABI (É proibido filmar?) revelou um episódio de agressão policial em Milagres (BA), depois que um capitão da Polícia Militar da Bahia deduziu estar sendo filmado por uma adolescente, enquanto um grupo da vizinhança era abordado pela guarnição. A ABI chegou a abordar o assunto em um encontro com representantes de órgãos responsáveis pela segurança pública, membros do Judiciário, advogados e jornalistas. Na época, a SSP-BA enviou uma nota em que informava que a Corregedoria Geral estava acompanhando a investigação.
Passados mais de três anos do ocorrido no interior do estado, a Associação buscou mais uma vez respostas sobre o resultado da apuração. A PM afirmou que na época do fato relatado pela matéria da ABI, “o policial militar suspeito de praticar agressões foi afastado das atividades pelo tempo que duraram as investigações. Ao fim da Sindicância, a mesma foi arquivada. O referido policial não trabalha mais na região”, diz o email enviado pela Corporação.
A ABI procurou o Comando da PM-BA e a Secretaria da Segurança Pública do Estado, para dizer à sociedade o que tais instituições estão fazendo para coibir o abuso de autoridade desencadeado pelo registro de sua atuação, por profissionais de imprensa ou não. Segundo a SSP, a orientação para seus efetivos civis e militares é de que não existe lei que proíba a filmagem. “A SSP capacita os efetivos sobre o direito do cidadão. A pasta destaca ainda que orienta as equipes, existindo viabilidade, a gravarem as abordagens e cumprimentos de mandados. Os materiais podem ser usados durante possíveis apurações de conduta”, diz o órgão.
O advogado Samuel Vida, professor de Direito da UFBA e Ucsal, explica que uma ação policial de abordagem a um cidadão ou cidadã é uma ação pública. “Deveria interessar aos policiais que ela fosse registrada, para não pairar nenhuma dúvida quanto à característica legal dessa ação”, afirma. Em vários países, o policial filma a própria ação, seja em fardas com câmera acoplada seja com um agente na função de registrar de maneira a preservar o policial de uma eventual denúncia falsa ou acusação de excesso que não tenha ocorrido.
No Brasil, há um processo tímido de implantação desse recurso, com tentativas por parte dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Aqui na Bahia, a SSP afirmou que analisa a utilização de câmeras nos uniformes das polícias. “A ação não pode ser resguardada por uma escolha do agente. O cidadão pode filmar, é um direito filmar. Não há absolutamente nenhum impedimento legal para esse registro”, explica Samuel Vida.
No entanto, o advogado recomenda alguns cuidados. “Esse registro não pode ter excessos. Uma filmagem que narra um acontecimento com uma interpretação que não se confirme a posteriori, pode levar o autor a responder. Há uma recomendação que preferencialmente os cidadãos ao registrarem abordagens abstenham-se de fazer narrativas”, adverte. Ele, inclusive, sugere que se faça a transmissão ao vivo pelas redes sociais, porque o conteúdo vai ficar salvo, ainda que o aparelho seja ilegalmente confiscado. “O que o que mais protege alguém que registrou um ato abusivo é a publicidade. Quanto mais divulgado menor a chance de retaliação”.
Uma das reações de policiais filmados em abordagens é ameaçar levar o autor do registro para a delegacia. Mas o advogado Fernando Santos, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB explica que a condução coercitiva é medida excepcional e só pode ser realizada nas hipóteses autorizadas por lei. “A pessoa indicada enquanto testemunha tem o dever cidadão de colaborar com as investigações, mas se for vitimada por uma condução forçada irregular, precisa registrar a ocorrência de um crime de abuso de autoridade”, afirma.
Violência contra a imprensa
O jornalista e empreendedor Evilásio Júnior, conhecido por mostrar os bastidores da política da Bahia, com matérias e entrevistas exclusivas, passou por um sufoco durante as manifestações de junho de 2013 no Brasil. “Era Copa das Confederações, o país estava pegando fogo. Parte da corporação entrou no clima de vale-tudo e passou a agredir manifestantes e a imprensa, de forma arbitrária”, conta. Evilásio atuava como editor-chefe do site Bahia Notícias, mas resolveu cobrir as manifestações. “Presenciei um rapaz que estava com uma câmera fotográfica ser agredido pela PM. Nem sabia que ele era um profissional a serviço do Correio. Deram uma gravata nele, jogaram no chão e tomaram o equipamento. Me aproximei e perguntei o que estava havendo e os policiais se exaltaram”, relata o editor do site que leva o seu nome. O veículo está com as atividades suspensas durante a pandemia e seu conteúdo está em fusão temporária com o site Bahia Jornal.
Na ocasião, mesmo Evilásio tendo se identificado como jornalista e informado que estava a trabalho, foi agredido, imobilizado e recebeu jatos de spray nos olhos. “Percebi que eles queriam me provocar para eu perder a razão e eles terem motivo para me prender por desacato”, lembra. Outro colega de profissão se aproximou para ajudar, mas foi levado preso. “Eu respeito a Polícia Militar e a Polícia Civil. Tenho familiares com história nas corporações e sei que o trabalho deles é fundamental para a população. O que houve comigo foi um excesso”. Para ele, é essencial ao jornalista ter conhecimento sobre a legislação para se proteger de abusos. “Eu tenho conhecimento sobre as leis, pude me defender segundo o que diz a legislação brasileira. Porque a violência deles intimida e o profissional pode acabar não apurando uma informação, evitando ir para determinada pauta, se autocensurando”, alerta.
Para o jornalista Ernesto Marques, presidente da Associação Bahiana de Imprensa, tensão e colaboração fazem parte da relação entre imprensa e forças de segurança. “Como braço armado do Estado, as polícias devem ter em conta que a sua atuação sempre será pauta da imprensa. Tanto para o aplauso, quanto para a denúncia”, observa. “Os agentes de instituições públicas precisam conviver com a natureza essencialmente crítica da imprensa e sua obrigação de denunciar”, defende o dirigente.
Segundo Marques, abordagens abusivas, por exemplo, ou excessos na aplicação da força institucional do distintivo, ou da coerção pela imposição de armamento letal ou não letal, são exemplos de má conduta e precisam ser denunciados. “Pessoas do povo que não trabalham com atividade jornalística têm o direito de escolher o que fazer diante de um abuso dessa natureza. E, assim como os profissionais da notícia, não podem sofrer qualquer tipo de represália por isso”, afirma.
Abuso de autoridade
De acordo o advogado Samuel Vida, a ideia de desacato à autoridade tem servido no Brasil para justificar abusos policiais. “Um cidadão pode questionar uma ação policial, que é parte da ação pública e deve ser fiscalizada”, explicou, em entrevista realizada na sede da ABI. Samuel se dedica a desenvolver um trabalho que alia a atuação na advocacia com a formação de novos quadros, para, segundo ele, pensar o direito numa perspectiva democrática e comprometida com os direitos humanos. O professor acredita que há uma tradição no Brasil de uma polícia violenta e ilegal. “Uma polícia que opera com a violência como recurso profissional, técnico, eu diria. Portanto, há uma formação policial orientada para o viés da prática sistemática da violência contra os cidadãos”, analisa.
Ele denuncia que a ação policial no Brasil em geral e na Bahia é marcada por uma violência sistemática. “A militarização, em especial, da chamada polícia militar, concorre para isso, porque trabalha com a ideia de uma guerra e um inimigo. Esse inimigo acaba sendo materializado no cidadão negro e pobre, que passa a ser a vítima dessa ação de combate”, afirma o advogado. Filho de ferroviário e de uma costureira, morador do Pau da Lima, ele conhece bem essa realidade e recorda que sua origem familiar o colocou muito cedo com essa dimensão de se reconhecer enquanto indivíduo negro e potencial alvo da violência policial. “Temos uma política de segurança profundamente violenta, brutal, genocida. São abordagens absolutamente fora da legalidade que deveria marcar uma polícia cidadã. Não é possível conciliar democracia com política de segurança pública violadora de direitos”, ressalta.
Samuel Vida lembrou episódios de sua adolescência. Desde batidas policiais até um delegado que andava com uma espécie de chicote, para espancar garotos que estivessem na rua à noite. “Esse é um problema estrutural que marca a formação institucional brasileira e que nunca foi devidamente enfrentado por nenhum governo. Nem os governos mais progressistas”, critica.
Por outro lado, o professor considera a Lei de Abuso de Autoridade (13.869/2019) um avanço. “Ela consegue definir com mais precisão aquelas situações que se enquadram em abuso de autoridade. Anteriormente, nós tínhamos uma disposição genérica, que exigia uma interpretação mais complexa para enquadrar. Essa lei é mais detalhista”, avalia.
A Lei de Abuso de Autoridade apresenta, em seu Capítulo IV, 24 hipóteses normativas vigentes que possibilitam a incidência de sanções de natureza penal ao agente público que abuse do poder que lhe foi atribuído. “Esta lei representa um avanço estrutural na luta por um sistema que se distancie do autoritarismo”, concorda o advogado Fernando Santos. Segundo ele, a imposição de limites rígidos à liberdade de atuação do Estado e a possibilidade de apuração e punição de eventuais excessos fortalece a percepção de pertencimento a um Estado Democrático de Direito.
Além de alterar dispositivos normativos pré-existentes, a lei foi responsável pela revogação da antiga lei de abuso de autoridade, forjada durante a ditadura militar, que, na análise do especialista, apresentava instrumentos ineficazes de responsabilização dos agentes que cometessem os ilícitos ali disciplinados.
Racismo e impunidade
Samuel Vida ressaltou a natureza institucional da violência como uma técnica indissociável da ação policial no Brasil. “Isso tem raízes históricas. A maioria das PMs se formou ainda no período da escravidão e em muitos casos através da arregimentação de capitães do mato. Na verdade, as polícias vão sendo criadas para substituir as milícias privadas dos senhores de engenho e que passam a ser mantidas pelo estado, com uma função clara de conter aquela maioria reprimida e tratá-la sempre como inferior, como não cidadãos”, reflete.
Segundo ele, essa lógica não se modifica na república e se acentua em momentos de autoritarismo, como na ditadura militar. “Isso está sendo retomado neste momento de maneira muito intensa sobretudo pela produção de uma espécie de populismo punitivista em torno da ideia de segurança pública”. Samuel destaca que parte da população defende que se mate o infrator. “Isso cria um ambiente que legitima a ação violenta e produz por parte das instituições o que eu tenho chamado de cinismo institucional. Porque não se trata de casos isolados, como declaram”. Em 2014, recorda o professor, a PM produziu um material onde diziam “se orgulhar de ter lutado contra Canudos, contra a Revolta dos Malês, ‘defendendo a sociedade baiana’. Ou seja, eles têm orgulho de ter operado contra as tentativas de democratização da sociedade”.
Todas as ações ilegais têm previsões punitivas, seja na esfera penal ou administrativa. “Mas esses procedimentos acabam sendo esquecidos. A própria imprensa não acompanha o caso até o fim. Há uma boa divulgação num primeiro momento. Passados dez dias, ninguém fala mais do caso. A imprensa precisaria ter um protocolo de acompanhar”, destaca Samuel Vida. Para ele, é preciso que a pauta jornalística tenha a capacidade de manter aquele tema periodicamente revisitado e monitorado, “porque senão a probabilidade é de que a punição seja branda ou inexistente”, reconhece. “Eu já desisti em pelo menos duas ocasiões de registrar a ocorrência. Não é fácil enfrentar uma instituição que é extremamente solidária internamente. Eles fazem tudo para impor obstáculos, arrastar a apuração e as pessoas esquecerem. Gerar impunidade”, lamenta.
Para Samuel Vida, “a imprensa é fundamental e pode ser a parceira mais preciosa, sobretudo, se ela compreender a necessidade de acompanhamento desses casos”, afirma. “Ela [a imprensa] precisa incorporar na sua própria atuação a diversidade racial e o debate permanente sobre as desigualdades raciais, tanto na definição de pauta quanto na composição do corpo jornalístico. Ainda é preciso mais engajamento e uma estratégia mais definida”, conclui o advogado.
>> Seguem abaixo as respostas enviadas pela SSP e pela PM-BA:
SSP-BA, dia 29 de abril de 2021
A SSP investe em capacitação e orienta os policiais sobre o direito do cidadão, em alguns casos profissional de jornalismo, de filmar a atividade policial. Caso ocorra, as Corregedorias são acionadas. A SSP solicita que, caso aconteça qualquer tipo de ameaça virtual, verbal ou física, a vítima registre o caso em uma Delegacia Territorial para que rapidamente as medidas correcionais sejam adotadas e o agressor responsabilizado. Não existe lei que proíba a filmagem. A SSP capacita os efetivos sobre o direito do cidadão. A pasta destaca ainda que orienta as equipes, existindo viabilidade, a gravarem as abordagens e cumprimentos de mandados. Os materiais podem ser usados durante possíveis apurações de conduta.A SSP analisa a utilização de câmeras nos uniformes das polícias.
Email da PM-BA, dia 21 de maio de 2021
Ressaltamos que é importante que os denunciantes formalizem os fatos através da Corregedoria da PM (rua Amazonas, nº 13, Pituba, Salvador/BA) ou a Ouvidoria da instituição (pelo 0800 284 0011 ou pelo site www.pm.ba.gov.br). A identidade do denunciante é mantida em sigilo. Dessa forma, as circunstâncias serão apuradas oficialmente com todas as partes sendo ouvidas.
Conforme informações obtidas junto à Corregedoria da PM, na época do fato relatado pela matéria da ABI, ocorrido em Milagres, o policial militar suspeito de praticar agressões foi afastado das atividades pelo tempo que duraram as investigações. Ao fim da Sindicância, a mesma foi arquivada. O referido policial não trabalha mais na região.
A Polícia Militar desconhece a informação de que vídeos de supostas agressões estariam sendo utilizados como peça educativa no âmbito desta instituição.
A Corporação tem um efetivo de 29.310 mil policiais militares.
A Associação Bahiana de Imprensa (ABI) e o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) reuniram na tarde desta sexta-feira, 14 de maio, jornalistas e pesquisadores para discutir as circunstâncias históricas que determinaram a implantação do Idade D’Ouro do Brazil, o primeiro jornal que existiu na Bahia e o segundo no Brasil, e o Diário Constitucional, primeiro jornal no país a fazer oposição ao governo. Transmitido pelo Youtube do IGHB, o evento online marcou os 210 anos da imprensa na Bahia, trouxe curiosidades sobre a imprensa da época e homenageou Manoel Antonio da Silva Serva, pioneiro da indústria gráfico-editorial privada brasileira.
Já na abertura, o jornalista e radialista Ernesto Marques, presidente da ABI, destacou sua expectativa com a parceria entre as entidades proponentes do encontro, ressaltando a importância de se conhecer a história do nascimento da imprensa no estado. “É uma honra muito grande participarmos junto com uma instituição tão importante quanto o IHGB. Esperamos que essa parceria seja muito profícua e produza outros encontros como esse”, afirmou Marques, ao entregar a mediação do evento para o jornalista Jorge Ramos, pesquisador do IGHB e diretor da ABI, responsável pelo Departamento Museu Casa de Ruy Barbosa.
Como debatedores, a mesa contou com o jornalista Leão Serva, o historiador Pablo Magalhães e o publicitário e jornalista Nelson Varón Cadena, diretor de Cultura da ABI. Os pesquisadores presentearam a audiência com abordagens aprofundadas do conteúdo das edições e analisaram os impactos da imprensa na sociedade colonial da Bahia.
Em mais de 40 anos de jornalismo, Leão Serva atuou nos principais órgãos de imprensa do país e hoje dirige o Departamento de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo. Ele é tataraneto de Manoel Antonio da Silva Serva, fundador e dono da tipografia onde era impresso o Idade D’Ouro do Brazil, jornal que começou a circular em 14 de maio de 1811. Além de imprimir o Idade D’Ouro do Brazil e depois outros jornais, ela produzia formulários e outros impressos, como a revista As Variedades ou Ensaios de Literatura, a primeira publicação na área cultural do Brasil, surgida em 1814. “Dizem que o Brasil não tem memória, mas uma pequena lembrança persistiu da história da fundação da imprensa na Bahia por Manoel Antonio da Silva Serva”, comentou. Segundo ele, foi um livro de Berbert de Castro que lhe fez conhecer melhor a história do seu antepassado e foi o professor Luís Guilherme Pontes Tavares, vice-presidente da ABI, quem o atraiu para a pesquisa histórica.
Leão Serva ressaltou o pioneirismo que a Bahia costuma ter ao longo da história do Brasil e traçou paralelos entre a imprensa de ontem e de hoje. “Existem momentos na história em que encontramos fatos muito parecidos com os do passado. Em seu tratado sobre a história da Idade D’Ouro, a professora Nizza da Silva destaca o fato de que era um jornal sem reportagens, do gênero opinativo ou de uma reflexão de fatos em segunda mão. E hoje, estamos assistindo a uma retração muito acentuada da dimensão noticiosa dos jornais e uma acentuação do jornalismo opinativo. Olhando aqueles jornais do passado, eu tenho aprendido muito nessa reflexão de para onde vai o jornalismo no século XXI”, analisou o professor universitário, autor do livro “Um tipógrafo na Colônia: vida e obra de Silva Serva, precursor da imprensa no Brasil e das fitas do Bonfim”.
O historiador Pablo Magalhães, professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), falou dos impactos do Idade D’Ouro na sociedade da época e as origens do jornal. Ele dedicou os últimos 12 anos para estudar Silva Serva, um comerciante nascido entre outubro e novembro de 1761. Magalhães rebate pesquisadores que entendem o Idade D’Ouro como um jornal áulico. De acordo com ele, a imprensa na Bahia é estabelecida entre a Conjuração Baiana de 1798 e a Guerra da Independência.
“Considerar esses dois episódios históricos significa entender a importância da imprensa entre um e outro. Era um momento de absolutismo monárquico. Doze anos antes da Idade D’Ouro surgir, quatro pessoas foram decapitadas em Salvador por desafiar a autoridade colonial”, argumenta Pablo. “Aquela imprensa foi instituída sobre um mecanismo de censura. Para a tipografia ser criada, teve que existir uma comissão de censura. E o governador interferia nisso. Dizer que o jornal é áulico seria simplificar”, explica. O pesquisador também detalhou o perfil biográfico da família serva e falou sobre a atuação dos primeiros jornais em processos históricos decisivos, como a expansão do discurso emancipacionista.
“É na Tipografia Serva também que começa a trajetória de um jornal que acabou se transformando em três títulos diferentes: Diário Constitucional, que circulou de agosto de 1821 até março de 1822; O Constitucional (abril a agosto de 1822); e finalmente se torna Independente Constitucional. “Ele foi o segundo jornal diário e o primeiro jornal de oposição no Brasil e também o primeiro a sofrer agressões”.
De acordo com Cadena, o Diário começou com a proposta de ser imparcial. “Mas nunca foi. Não existe jornal de oposição nem de situação imparcial. Quando um jornal diz que é imparcial é porque é muito parcial”, opinou. “O que favorece o surgimento do Diário Constitucional é o fim da censura. A partir de 1821 até 1823 surgiram pelo menos 15 jornais”, disse.
Ao contrário do Idade D’Ouro, o Diário Constitucional não era autofinanciável. ‘A gente não sabe quem sustentava o jornal. Era muito comum na época os assinantes não pagarem e esse foi o fim da maioria dos jornais que circulavam”, observou o pesquisador. Por seu caráter opositor, o jornal foi empastelado por soldados portugueses.
A live está disponível no YouTube do IGHB e pode ser conferida abaixo: