2017. Feriado de Carnaval. Ela estava há dias na Unidade de Tratamento Intensivo. Depois de tantos exames investigativos, alguns deles traumatizantes, veio o diagnóstico: “Você tem um carcinoma” [tumor maligno]. A doença de Iva tinha começado na mama e se espalhado para outras partes do corpo, como ossos, pulmões e fígado. Aos 32 anos, estava vivenciando a mesma sentença de sua mãe, falecida há quase dez. Iva, na verdade, é o nome fictício de Marília Costa, protagonista de uma das oito histórias contadas pela jornalista e pedagoga baiana Mariana Sebastião, no livro “A Metamorfose das Borboletas: mulheres jovens nas vivências do câncer de mama e seus voos de resiliência”, lançado na última sexta-feira (26), como parte das ações do Outubro Rosa.
O evento aconteceu no Núcleo de Oncologia da Bahia (NOB), em Salvador, e apresentou ao público uma obra “feita a muitas mãos”, fruto de uma campanha de financiamento coletivo numa plataforma online. “Esse livro não é mérito meu. Obrigada a todos e todas que torceram, acreditaram e apoiaram essa ideia. Está aí a concretização do apoio de vocês”. A publicação conta histórias de vida de mulheres jovens que enfrentaram ou convivem com a doença e mostra como elas estão ressignificando as suas existências. Cada capítulo traz um relato com nome fictício e cada mulher é relacionada a uma espécie de borboleta, de acordo com a sua trajetória e personalidade. Iva é a Oeneis ivallda.
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Durante o tratamento de um câncer de mama aos 24 anos, no qual foi submetida à quimioterapia, cirurgia e radioterapia, Mariana resolveu escrever o livro para alcançar outras mulheres que estejam enfrentando a doença antes dos 40 anos. Mestre e estudante de doutorado pela UFBA, a jornalista, no entanto, tinha outras pretensões. “Sempre sonhei em escrever um livro, mas imaginava que ele seria acadêmico. Fui surpreendida com o diagnóstico e meu primeiro é sobre câncer”.
Mariana detalhou o processo de produção do livro, prestou contas aos apoiadores do projeto. Ela explicou que chegou a tentar, sem sucesso, recursos com possíveis patrocinadores e optou pela campanha, como outros jornalistas têm feito. “Quando estamos doentes, recebemos apoio; quando melhoramos, nos tornamos apoio para alguém”. As doações possibilitaram a impressão e agora ela está vendendo os exemplares para arcar com os custos editoriais. “Não há benefício próprio. O livro é para ajudar outras mulheres. Quem busca conhecimento, encontra coragem para decidir”, defende a jornalista, cofundadora da Rede Por Você – Rede de Orientação e Apoio a Mulheres Jovens com Câncer de Mama.
Voos de resiliência
“O câncer de mama nessas mulheres jovens traz preocupações com a sexualidade e feminilidade. Algumas delas vão vivenciar o medo de não conseguir ser mãe, outras, o medo do abandono do companheiro (…). Histórias emocionantes. Cada uma dessas jovens guerreiras vai nos mostrar que é possível superar e transformar a vida de maneira positiva, mesmo após o enfrentamento de uma doença tão impactante”, ressalta o prefácio assinado pela oncologista clínica Renata Cangussú. Emocionada, a médica compôs a mesa do evento, falou sobre fatores de risco e da importância do diagnóstico precoce.
Segundo ela, embora a doença seja considerada rara em jovens, dados atualizados pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA) dizem que o número de casos triplicou nos últimos anos. Entre os fatores que contribuem para esse aumento, Cangussú destaca o envelhecimento da população, as técnicas mais avançadas para o rastreamento e mudanças de estilo de vida. “Antigamente as mulheres tinham oito, dez filhos. Hoje, muitas decidem ter mais tarde ou não ter. Além disso, temos obesidade, sedentarismo, o consumo de álcool muito cedo. Mesmo em pequenas quantidades, o álcool eleva as chances de câncer de mama. É o item isolado que mais contribui”. Ela ressalta ainda que as comidas industrializadas e ultraprocessadas representam 40% da dieta no Brasil.
Há mais de dez anos a psicóloga Sabrina Costa trabalha com psico-oncologia. Ela lembra de quando começaram a chegar as mais jovens. “Tenho visto o enfrentamento dessas mulheres como uma metamorfose mesmo. Elas não se conhecem, mas estão encarando de uma forma muito semelhante. Eu me sinto muito esperançosa quando vejo um livro como esse. É possível renascer”.
Coube à enfermeira Andréa Muniz a tarefa de transmitir a Mariana informações sobre as formas de tratamento e os efeitos colaterais. Ela relatou a experiência desse atendimento. “A consulta dela foi muito marcante para mim. Precisava falar tudo sobre a quimioterapia. Ela imediatamente se interessou pela crioterapia*, porque diminuiria as chances de queda capilar. A informação está ao alcance das nossas mãos. Temos que vencer o câncer aos poucos”, afirmou.
É o que tem feito Marília Costa, a Iva do livro. Paciente com câncer avançado, ela subiu ao púlpito para levar uma dose de esperança e resiliência. Marília é amiga de Mariana. “Pude acompanhar o tratamento, a preocupação extrema com a perda de cabelo. Ela é Sansão, sabe? A força dela está nele”, brincou. Pouco tempo depois, ela também foi diagnosticada. “Eu me isolei do mundo. Não queria contato com ninguém, principalmente com Mariana. Ela insistiu. Um dia, eu liguei para ela e disse ‘olha, você está liberada. Pode vir'”. A partir daí, assim como a amiga, Iva tomou as rédeas do próprio tratamento. Ela sabe que ter câncer metastático é viver reviravoltas toda hora, mas aprendeu a “negociar” com a doença”. E segue vivendo o hoje como se fosse o futuro.
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*É uma técnica para melhorar a circulação sanguínea do couro cabeludo, através de um estímulo de resfriamento, e evitar a queda de cabelo durante o tratamento quimioterápico.