Por Claudio Luiz de Carvalho
O ano era 1690. O tempo, também de mudanças políticas e sociais, quando, na Alemanha, Tobias Peucer apresentou sua tese de doutoramento que tratava sobre relações e relatos de novidades, ou, podemos dizer, sobre jornais e notícias. Dessa tese pode-se extrair a afirmação de que “não há nada que satisfaça tanto a alma humana como a história, seja qual for a maneira como tenha sido escrita”.
A história só nos é dada a conhecer por meio da visão particular do historiador, muitas vezes pela sua interpretação dos acontecimentos históricos, já que nem sempre estaria presente na ocorrência dos fatos narrados. No mundo moderno, em que a tecnologia é o “olhar” dos historiadores modernos, principalmente por meio da fotografia e da televisão e, mais recentemente, por meio da web, o fato e o acontecimento que ocorrem não nos sãos perfeita e corretamente transmitidos.
Por que isso? Não é somente a interpretação distante do historiador, mas a filtragem que a tecnologia permite e exige para informar sobre aquilo que está acontecendo. Some-se a seleção efetuada pelos que interferem na informação (fotógrafos, repórteres cinematográficos, editores, designers, etc.) e o que chega à população é uma realidade manipulada e com conteúdo ideológico, econômico, financeiro e social não necessariamente idêntico ao que de fato ocorreu.
No mundo atual todos os que participam de uma rede social (no Brasil, por exemplo, cerca de 80% da população está nessa condição), também são produtores de conteúdo de informação. Narram o que veem no seu dia-a-dia e sob a sua ótica, sua cultura, sua compreensão, às vezes sob sua maledicência, sem que quem quer que seja possa colocar um filtro ético ou moral nesse conteúdo. O efeito junto ao receptor é inusitado, incerto e, não necessariamente, tem consequência positivas.
O historiador americano Timothy Snyder, autor do livro “Sobre a Tirania”, sintetiza um alerta sobre esse risco de informação: “…um dos temas mais delicados atualmente é o acesso aos fatos. Fala-se muito em pós-verdade, pois as pessoas só leem na internet aquilo que comprova suas visões do mundo”. Para ele a democracia atual corre risco com essa questão, pois entendemos que pós-verdade é algo novo, pós-moderno.
Não é. A pós-verdade tem suas origens no fascismo, conforme explica Snyder: “A mentalidade da pós-verdade era e é contra o Iluminismo, contra a ideia de que a razão deve governar a vida e a política”. Snyder complementa que a democracia necessita de confiança mútua, o que só é possível quando “se compartilha um mesmo mundo de fatos”, o que, a realidade de produção de conteúdo de forma livre não favorece e, sim, pelo contrário, dá condições para que se criem mundos baseados na própria verdade de cada um, com o olhar particular sobre os fatos e acontecimentos.
A atuação do jornalista
De qualquer forma, a principal finalidade do jornalismo é fornecer aos cidadãos as informações de que necessitam para serem livres e se autogovernarem, definição dos jornalistas norte-americanos Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Nada mas essencial na sociedade moderna e atual, na qual ,comparativamente, o jornalista possui também uma visão muito particular, com a agravante de que, com a internet, ele passa muito mais tempo na tentativa de sintetizar o grande volume de informação a que tem acesso, sem que atue na busca própria do que é efetivamente a sua visão do fato ou do acontecimento. Em outras palavras, o jornalista atual é passivo e pouco procura saber da realidade que é sua responsabilidade narrar.
A forma de mudar isso seria o jornalista entender melhor o significado original de objetividade para dar mais solidez e concretude à informação. O jornalismo tem suas raízes intelectuais no Iluminismo dos séculos 17 e 18 e que pode se traduzir na ideia da Primeira Emenda da Constituição Norte-americana: no meio da diversidade de pontos de vista é maior a possibilidade de se conhecer a verdade. Estudiosos entendem que essa ideia permitiu a objetividade no trabalho jornalístico.
No caso específico do fotojornalismo, que também gera conhecimento, provoca sensibilização, contextualiza e incita a imaginação de que quem vê uma foto produzida no campo da realidade, visualiza o arranjo do seu espaço no mundo digital, de modo que sua dimensão informativa seja percebida e observada. A fotografia dos meios digitais é um suporte da informação imagética. Apesar de partir de padrões tradicionais, tenta construir uma nova maneira de prover conteúdo no ambiente limitado da internet.
Entretanto, a necessidade que os produtores de imagens fotográficas têm em atender às regras impostas pelas instituições para as quais trabalham e ao público que se utiliza das publicações dessas instituições para se informar, cria um discurso característico para cada publicação. Esse público, porém, precisa estar amadurecido para que reflita sobre a imagem que recebe e que lhe informa sobre uma realidade distante e não presencial.
A narração do fato
Muniz Sodré trata dessa questão em seu livro A narração do fato: “Há que se fazer a distinção entre fato e acontecimento, para demonstrar que o discurso informativo constrói e comunica, por meio da narração, as transformações e passagens no fluxo cotidiano”. Podemos interpretar isso como a maneira em chamar a atenção de que o jornalista é um mediador privilegiado, que constrói uma narrativa e entrelaça os fatos ao mesmo tempo em que envolve o público, prendendo os leitores e o tema, sob sua visão particular, no enredo de uma notícia.
Mesmo nessa condição privilegiada, o papel do jornalista auxiliar que o público consiga colocar as coisas dentro de uma determinada ordem. Por isso, o jornalista atua como um mediador ou “explicador” dos acontecimentos, o seja, para que assim atue, deve checar corretamente a informação e de forma a esgotar dúvidas, o que lhe dará condições de transmiti-la de forma ordenada, confiável, para eu o haja o correto entendimento do público.
Muniz Sodré explica que “a narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, a aproximação desse acontecimento, o lugar onde este é chamado a se produzir, acontecimento ainda por vir e por cujo poder de atração a narrativa pode esperar, também ela, realizar-se.”
Sob essa ótica, o jornalismo, ao relatar o acontecimento, o faz com uma linguagem diferente da literatura. Evidente que segue os critérios que definem o valor-notícia ou o valor da notícia, ao qual se somam as questões da atualidade, proximidade, impacto, interesse público, relevância, intensidade, imprevisibilidade, entre outros.
Muniz Sodré chama a notícia de “economia da atenção” e a classifica como um produto. Como mercadoria, diz ele, a notícia tem um desenvolvimento modelar na imprensa norte-americana, país que considera a liberdade “uma garantia do direito civil de livre expressão e de representação da realidade cotidiana”. A notícia, além de transmitir os aspectos da realidade, é também capaz de criar uma realidade própria.
O fato seria uma combinação das unidades de resistência, de coisas. Só que, acentuamos, não é a própria coisa e sim uma objetivação conceitual da realidade dos fenômenos. E, ainda, há que se diferenciar o fato genérico (relativo a objetos e fenômenos) do fato social (relativo ao ser humano).
O fato torna verdadeiras ou falsas as proposições. Por isso, seu significado inclui as ocorrências e as ações. Em outro momento, Sodré explica que existe o conhecimento de fato e o conhecimento da consequência do que se afirma sobre determinada coisa. A ideia é indicar que os fatos são selecionados no cotidiano para que se possa fazer jornal e a notícia é um recorte que destaca o que compõe o acontecimento.
O fato pode ser provado na realidade. Sua representação social é o acontecimento (ou fato-histórico), com a diferença de que fato é, na verdade, uma elaboração intelectual e o acontecimento decorre da realidade.
Deleuze e Guattari explicam o que entendem por acontecimento: “não é absolutamente o estado de coisas; ele se atualiza num estado de coisas, num corpo, num vivido, mas ele tem uma parte sombria e secreta que não para de se subtrair ou de se acrescentar à sua atualização: ao contrário do estado de coisas, ele não começa, nem acaba, mas ganhou ou guardou o movimento infinito a qual dá a sua consistência”.
É o acontecimento que dá caráter de verdade ao fato e o transforma em notícia ou dá-lhe as características de notícia. O acontecimento não tem explicação racional, necessita de um enquadramento que permita estabelecer a delimitação de um campo e um fora de quadro. Esse, o quadro, determina o que deve ser visto, o que os americanos chamam de framing, um sistema de referência para dar sentido ao acontecimento. Nessa condição, o enquadramento midiático é a principal operação que, por meio da seleção e ênfase, constrói o acontecimento. Ou seja: os fatos ganham sentido com base na sua seleção e no tratamento dado a eles para a transmissão.
Arquembourg explica que “os acontecimentos são certamente fruto de um trabalho de constituição coletiva, mas eles imbricam também a participação de atores e de um público que não é apenas uma massa de consumidores de informações” para ressaltar que os jornalistas são, na verdade, atores que se mobilizam para a determinação dos fatos transformados em acontecimento midiático. Sodré explica que o “jornalismo dispõe de uma forma própria de conhecimento, construído a partir do que cada fato/fenômeno extraído da realidade social tem de singular”.
A singularidade é um tempo marcado pelo que chama de “aqui e agora” do cotidiano, captado pela forma com que se constrói o jornal. É esse “formato” singular do jornal que permite o diálogo que se trava entre lei e regra, sociedade e comunidade, impessoal e particular.
É, porém, parcial, pois deixa de lado as diferenças entre o que de real acontece e o que se traduz no acontecimento jornalístico, pois isso se desenvolve após o fato. Em resumo, o jornalismo pauta como singular apenas o acontecimento da atualidade e com base na visão particular de quem apura ou narra esse acontecimento.
O acontecimento precisa também ser compreendido sob a ideia do seu registro afetivo, não só com base na lógica argumentativa de suas causas. Isto significa incluir o lado sensível da situação, o que provoca nos sujeitos envolvidos o que disso poderá advir. Sodré explica: “em vez da mera transmissão de um conteúdo factual, se trata da conformação socialmente estética de uma atitude”, acrescentando que a comunicação do acontecimento mais influência do que comunica.
Enfim, Sodré entende ser difícil que o jornalismo atente para essa questão, pois já habituou as pessoas a consumir o que é apresentado, o que acarreta deixarem de perceber a realidade dos fatos do cotidiano, narrativas da história e das práticas humanas.
*Claudio Luiz de Carvalho é jornalista, Mestre em Comunicação. (Artigo originalmente publicado no Observatório da Imprensa)