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Salvador, 465 anos, ó quão dessemelhante!

“Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante…”  
[Gregório de Mattos]
 

São Salvador da Bahia de Todos os Santos, cidade de tantos epítetos, comemora oficialmente 465 anos neste 29 de março. A celebração do aniversário da capital baiana inaugurou o ‘Festival da Cidade’, oito dias de folia com atrações tipicamente carnavalescas, uma marca cultural da terra. A primeira capital do Brasil – uma das mais antigas das Américas -, se notabilizou por um expressivo conjunto de manifestações culturais, desde a sua gastronomia, passando pela música, arquitetura, pintura, cinema, literatura, artes cenográficas, entre outros elementos responsáveis por sua singularidade. Salvador guarda no seu seio os traços fortes da tradição, mas abre-se para o novo. Isto contribui para o desenvolvimento de problemas de várias ordens, uma vez que são muitos os atores sociais, públicos e privados, que entraram neste jogo e vão continuar nele.

A Praça da Sé e seu entorno, vistos a partir do último andar da sede da ABI/ Foto: Joseanne Guedes/ABI-Bahia

A personagem mais crítica da cidade através dos tempos, dos seus costumes, dos seus valores morais, do exercício do poder pelos políticos da época, foi Gregório de Mattos.  A verve de Gregório de Mattos nos seus poemas do início da colônia já revelavam um cenário de uma cidade povoada de problemas sociais, a ambição desmedida dos políticos e uma extraordinária vocação para alimentar e endossar  prestígio social  nas classes dominantes e a acumulação de bens, via uma burguesia sem pudores. Problemas e carências atravessam o tempo secular, chegando até os dias de hoje. Passado e presente, porém, parecem ser as chaves da predição do futuro.

A data ‘29 de março’ foi definida pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), após a prefeitura solicitar, em 1945, um estudo para definir o marco. Já que nunca foi encontrado um documento que revelasse a data de fundação da cidade, após pesquisa apurada, historiadores membros do instituto fixaram a data simbólica. No quinto mandato à frente da entidade, a historiadora Consuelo Pondé de Sena presenciou capítulos importantes da história da cidade, com o olhar atento e sempre pronta para denunciar e despertar o interesse da população a conhecer sua história e preservar seu patrimônio.

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“Não há amor pela cidade. Há um desprezo causado pela falta de educação, por isso precisamos educar para a cidadania. Meu compromisso não é apenas como presidente do IGHB, mas também como cidadã. Ainda há muito a ser feito por Salvador, mas as últimas mudanças que tenho visto são significativas. Amo a minha cidade. Se critico, é para que ela fique melhor. Tenho esperança de que Salvador volte a ocupar um espaço digno entre as outras capitais brasileiras. Quando não temos esperança, nem adianta viver”, afirma Consuelo.

Não tão entusiasta e esperançoso em relação ao futuro da cidade, o antropólogo Roberto Albergaria toma como referência a obra de Gregório de Mattos. “Ele continua atual porque, numa visão antropológica, a história não mudou muito”. Para Albergaria, grande parte das críticas do poeta ainda é pertinente. “Ao invés de comemorarmos, deveríamos pensar pequenas ações de melhorias. Não sou pessimista, mas realista. Não dá para imaginar um futuro maravilhoso. Que se comemore, mas sem esperança demais e sem saudosismo demais”.

Vista do Elevador para a Cidade Baixa e seus pontos turísticos/ Foto: Reprodução

Filho de nobre português, senhor de engenho, o poeta soteropolitano Gregório de Matos e Guerra compôs versos satíricos contra as autoridades e os costumes de sua época. A obra atribuída a Gregório de Matos contém mais de 700 textos de caráter crítico e irreverente sobre os costumes da Bahia colonial. Gregório de Mattos, já no século XVII, investia contra pobres e ricos, contra autoridades civis e eclesiásticas. Basta ler alguns de seus poemas, para constatar que ninguém escapava das críticas do poeta apelidado de “Boca do Inferno”.

“Gregório criticava o espírito do mundo ocidental de acumulação de bens, de perseguir a fama. Dizia que a cidade foi transformada em ‘máquina mercante que não tem fim’. Até hoje o tripé do espírito sobre o qual se estrutura a cidade é dinheiro-poder-prestígio, que na época dele era a fidalguia e hoje é a chamada ‘ostentação’. Os nossos representantes políticos são movidos pela visão patrimonialista, que transforma o público em privado. Então, a base continua a mesma. Se a droga de exportação de antes era a cana, hoje é o axé music, o Carnaval. Continuamos com a monocultura, só que a máquina mercante de hoje exporta drogas audiovisuais”, provoca Albergaria.

Também para o historiador Fernando da Rocha Peres, autor de livros como “Gregório de Mattos e Guerra: Uma Re-visão Biográfica” e “Um Códice Setecentista Inédito De Gregório De Mattos”, a cidade de que falava o poeta gentio é bastante semelhante à atual. “Naquele momento, já havia o Carnaval, ou ‘alarde’, como eram chamados os festejos. Se estivesse vivo, creio que sua pena e seu papel estariam preparados para criticar a corrupção, a sujeira e a falta de educação que atingem a cidade, de um modo geral. É engraçado que se comemora o aniversário de ‘Salvadolores’, como eu chamo essa cidade dolorosa, mas não se celebra a morte de Gregório. Temos motivos para shows, mas falta saúde, educação e segurança”.

O historiador lembra que Gregório não poupava nem o governador. Por seu tom crítico, ele era mal visto por produtores rurais e autoridades. “Após criticar o governador Antonio Luiz Gonçalves, a quem ele chamava de ‘fanchono beato’, ele foi despachado para a Angola, onde ficou pouco mais de um ano. No seu retorno ao Brasil, foi impedido de pisar na Bahia, tendo morrido em Recife”. Gregório não publicou seus poemas em vida, mas sua sátira política tornou-se uma das vertentes mais conhecidas de sua obra poética:

“Que falta nesta cidade? Verdade.
Que mais por sua desonra? Honra.
Falta mais que se lhe ponha? Vergonha.
O demo a viver se exponha
Por mais que a fama a exalta
Numa cidade onde falta
Verdade, honra e vergonha.”
[Gregório de Mattos]
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Após denúncias de abandono, projeto prevê restauração do Paço Arquiepiscopal

Fachada do Palácio Arquiepiscopal, cuja notável beleza arquitetônica já não consegue esconder a degradação – Foto: Joseanne Guedes/ABI-Bahia

Um olhar mais atento sobre a Praça da Sé não deixa escapar a degradação do Palácio Arquiepiscopal de Salvador, considerado um dos maiores exemplos de arquitetura civil do período colonial brasileiro. O prédio construído no início do século XVIII integra a principal vitrine turística e cultural da Bahia, o Centro Histórico de Salvador, mas convive com o abandono evidenciado por janelas semiabertas, vidraças quebradas, paredes desgastadas, além da vegetação que se estende ao telhado, que também reclama reparo. Fechado há mais de uma década, o Paço Arquiepiscopal compõe o cenário de descaso com o patrimônio encontrado na Praça da Sé, onde há mármores sujos e quebrados, os bancos da praça foram transformados em pontos comerciais pelos ambulantes e até os degraus da entrada do Paço são utilizados como camas por pessoas em situação de rua.

Criada em 25 de fevereiro de 1551, a Arquidiocese de São Salvador da Bahia foi a primeira diocese do Brasil, uma das mais antigas das Américas, e possui o maior arquivo eclesiástico da América Latina. Quando elevada à arquidiocese, em 1676, foi, durante mais de duzentos anos, até 1892, a maior arquidiocese do mundo. O Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador inclui livros de batismo, casamento e óbito registrados na capital, no Recôncavo e no Sertão, dentre outros documentos importantes que revelam aspectos sociais, políticos e culturais da Bahia.

O Palácio do Arcebispado traz ao fundo o monumento da Cruz Caída, erguida em homenagem à antiga Igreja da Sé – Foto: Joseanne Guedes/ABI-Bahia

Já o Palácio Arquiepiscopal, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1938, data do ano de 1707 e se comunicava, através de uma pequena passarela, com a Igreja da Sé. O processo de reurbanização do centro de Salvador ignorou a relevância histórica do edifício da antiga Igreja da Sé, que foi demolido em 1933 e deu passagem à linha do Bonde da Companhia Linha Circular de Carris da Bahia – em meio aos protestos da sociedade baiana e de outros estados -, e, posteriormente, à atual Praça da Sé. A demolição da Sé construída no governo de Tomé de Souza foi tema da tese acadêmica “Memória da Sé”, do professor, escritor e poeta baiano Fernando da Rocha Peres. A polêmica causada pelo fato também foi abordada, numa perspectiva histórico-arqueológica, pelo ensaio monográfico do museólogo Carlos Alberto Costa, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Após um acordo firmado entre a Arquidiocese de São Salvador e a Universidade Católica de Salvador (UCSal), o fundo arquivístico foi transferido do Palácio Arquiepiscopal para o Laboratório de Conservação e Restauração Reitor Eugênio de Andrade Veiga (LEV), da UCSal. De acordo com um levantamento feito pelo bibliotecário do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Cristian José Oliveira Santos, e publicado pela Revista Brasileira de Arqueometria, Restauração e Conservação, após tratamento, o fundo retornará integralmente para o Palácio Arquiepiscopal. No entanto, isso não deve acontecer até que o prédio sofra intervenções que garantam o armazenamento adequado dos documentos.

Segundo dados do primeiro volume do Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia – IPAC/SIC, pesquisa coordenada pelo arquiteto Paulo Ormindo Azevedo, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), as últimas obras de conservação do Paço foram realizadas em 1964, quando houve “caiação externa, pintura de esquadrias e limpeza de cantaria”, afirma o documento publicado em 1975. Desde então, não houve qualquer intervenção para preservação do prédio.

“O prédio foi desativado no final da década de 60, mas ficou ali o arquivo da arquidiocese, com um funcionário que atendia a eventuais visitantes e pesquisadores. O abandono completo se deu com a transferência do arquivo para a Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Quando fizemos o inventário, o prédio já estava transformado em um arquivo morto da arquidiocese. Sem ninguém trabalhando ali, já começava o arruinamento. No fundo, tudo se deve à falta de conservação”, lembra o arquiteto.

Abandono

A situação de abandono do Palácio Arquiepiscopal, também conhecido como Palácio do Arcebispado de Salvador ou Palácio Arquiepiscopal da Sé, vem sendo denunciada há anos, com o intuito de despertar o interesse da população para conhecer sua história e incentivar a manutenção e preservação do acervo.

Uma das denúncias foi feita em março do ano passado pelo diretor cultural da Associação Bahiana de Imprensa (ABI-Bahia), Luis Guilherme Tavares. No artigo publicado pelo jornal Tribuna da Bahia, o jornalista classifica o descaso com o Paço como um problema “gritante” e afirma que “sua imponência não disfarça a ruína que pouco a pouco abate os quatro andares do prédio”.

Já o superintendente regional do Iphan, Dr. Carlos Amorim, nega a degradação. “O prédio não tem condições de ser utilizado, mas não está degradado. Aos olhos de quem trabalha com patrimônio histórico, ele está em situação muito razoável e de fácil recuperação”, defendeu.

À direita do Palácio, o prédio do antigo cinema Excelsior também está abandonado – Foto: Joseanne Guedes/ABI-Bahia

Após anos de desambientação e descaso, o prédio deve ser restaurado, através de um projeto aprovado pelo Ministério da Educação, com o apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O projeto apresentado pelo arcebispo de São Salvador da Bahia e primaz do Brasil, Dom Murilo Krieger, prevê a restauração completa do equipamento. De acordo com a arquidiocese, não há ainda previsão de abertura do palácio, pois dependerá da captação de parte dos recursos necessários e da execução das obras.

No ano passado, o Programa de Extensão Que Cidade é Essa?, coordenado pelo professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Márcio Campos, realizou um workshop homônimo que também abordou a situação do palácio e demais prédios da área do Centro Histórico de Salvador. Ele criticou a atuação de órgãos encarregados de proteger o patrimônio. “O poder público precisa estar à frente do processo, mas com uma compreensão de participação democrática da sociedade. É preciso questionar os mecanismos de representação hoje reconhecidos como tal. Se entendermos que cabe a estes órgãos agir para a proteção do patrimônio, o estado em que se encontram os azulejos do claustro da Igreja de São Francisco, por exemplo, fala por si”, afirmou o arquiteto.

Segundo Campos, o problema do Centro Histórico “envolve uma série de questões entrelaçadas: o centralismo da gestão associado a uma especulação fundiária e a interesses políticos, a falta de detalhe e cuidado com que o patrimônio arquitetônico foi tratado nos últimos 40 anos, em especial decorrentes da velocidade com que o volume da intervenção dos anos 90 foi efetuado”.

Projeto de recuperação

O arcebispo Dom Murilo Krieger reconhece que, em toda a América Latina, não há uma diocese com tantas obras artísticas e históricas como a de Salvador e destaca a importância do Palácio Arquiepiscopal. “Há muitas igrejas e prédios que precisam ser restaurados. Contudo, em um encontro com o superintendente regional do Iphan, expressei o desejo de que fosse dada prioridade absoluta ao Palácio da Sé, por ser um patrimônio de valor inestimável, de uma beleza única e de uma importância histórica especial. Foram dados vários passos para a concretização desse objetivo. Fomos ao Rio de Janeiro, na sede do BNDES, que assumirá a metade dos custos previstos para a restauração. Estamos atrás da outra metade”.

Foto: Joseanne Guedes/ABI-Bahia

Em 2002, a Cúria Metropolitana já havia tentado, sem sucesso, aprovar em Brasília uma proposta de restauração. Com a aprovação do projeto apresentado pelo arcebispo, o Palácio deve sofrer reformulação total. A antiga residência dos arcebispos dará espaço ao “Memorial da Igreja Católica Brasileira”, além de espaços para exposição, salas para a restauração de imagens e, também, para a restauração de documentos. Ao lado, a Prefeitura de Salvador pretende instalar uma espécie de museu dinâmico da cidade, no Cine Excelsior. O projeto estimado em 18 milhões, que inclui restaurações artísticas e arquitetônicas, já recebeu os primeiros recursos e está na fase de elaboração dos projetos executivos e complementares, como as partes de hidráulica, elétrica e iluminação.

De acordo com o superintendente regional do Iphan, Dr. Carlos Amorim, restaurar patrimônio tombado não é obrigação do órgão. “A lei de tombamento brasileira restringe o direito de propriedade, para preservar a memória nacional. Ela não é uma desapropriação. Há um grande equívoco em relação a isso. As pessoas são responsáveis pelos seus imóveis, independentemente de serem tombados ou não. O proprietário tem que provar que não tem recursos. E não é o que vemos ao passar, por exemplo, pelo bairro do Comércio, em que cada imóvel degradado exibe uma placa de vendas com o número do respectivo corretor”, afirmou o dirigente.

Para ele, o abandono dos imóveis comerciais e sua perda de função no Centro fizeram com que tudo entrasse em decadência e degradação. “Salvador tem um dos maiores sítios tombados contínuos do mundo. Isso é um problema muito grande porque o centro de Salvador não tem grandes finalidades, não cumpre funções sociais relevantes. Nosso propósito é recuperar tudo, mas os recursos são escassos e precisamos estabelecer parcerias como a que vai possibilitar a restauração do Palácio Arquiepiscopal”, completa.

Vista a partir do último andar do Edf. Ranulpho Oliveira, sede da ABI/ Foto: Joseanne Guedes/ABI-Bahia

A diretora do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), professora Consuelo Pondé, que também é presidente do Conselho Consultivo da ABI-Bahia, revelou que o arcebispo foi convidado para uma reunião na sede da associação. “Nós, da ABI, convocamos o arcebispo para uma conversa sobre o monumento arquitetônico. Mas, delicadamente, ele recusou-se a comparecer à sede, sob a alegação de que já estava tomando providências. Não sendo nordestino, como o D. Avelar Brandão Vilela, que sempre acolheu as convocações da Casa da Imprensa, ele não sabe como seria importante dar conta dessas medidas”.

Para a dirigente, que chegou a publicar um artigo no jornal Tribuna da Bahia sobre o abandono do palácio, “todo imóvel requer conservação e ocupação”. Em sua fala, há ainda esperança de que o Paço volte a ter uma ocupação digna e à altura de sua importância histórica. “Que bom que D. Murilo tenha se sensibilizado com o estado deplorável da bela construção e obtido recurso para sua recuperação”, analisa a professora.

Por Joseanne Guedes

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Festa do Bonfim recebe título de Patrimônio Imaterial Nacional

Em uma cerimônia na manhã desta quarta-feira (15), na Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, a festa em louvor ao Senhor do Bonfim, realizada anualmente em janeiro, foi reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Mais que uma grande manifestação religiosa da Bahia, a celebração é uma referência importante na afirmação da cultura baiana, além de representar um momento significativo de visibilidade para os diversos grupos sociais.

O reconhecimento do cortejo multirreligioso que leva mais de 1 milhão de pessoas para a Cidade Baixa de Salvador, em uma tradição iniciada há quase 300 anos, traz para o Estado a obrigação de estar junto da comunidade para garantir a manutenção da realização do evento. No entanto, pesquisadores questionaram a efetividade do registro, diante dos mecanismos de preservação utilizados pelo Iphan, e criticaram a realização da “Caminhada Lavagem de Corpo e Alma”.

Foto: Ingrid Maria Machado/G1

Na Bahia, o ofício das baianas de acarajé, a capoeira e o samba de roda do recôncavo baiano também são bens protegidos. Com a elevação, que chegou um dia antes de sua realização, a Festa de Nosso Senhor do Bonfim passa a ser periodicamente acompanhada pelos técnicos do Iphan e terá os seus elementos constitutivos monitorados, para preservar a memória da estado. O registro da festa como patrimônio cultural havia sido aprovado pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan em junho.

Ao ser registrada como ‘patrimônio imaterial’, uma festa passa a ter prioridade nas linhas de financiamento para bens culturais, sejam de programas municipais, estaduais, federais ou até internacionais. Na lista de bens imateriais brasileiros estão a festa do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, a Feira de Caruaru, o Frevo, a capoeira, o modo artesanal de fazer Queijo de Minas e as matrizes do Samba no Rio de Janeiro. Mas como determinar quando um bem imaterial é importante para um município, um estado ou uma nação?

Segundo o Iphan, os bens culturais imateriais estão relacionados aos saberes, às habilidades, às crenças, às práticas, ao modo de ser das pessoas. Os conhecimentos enraizados no cotidiano das comunidades, as manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas rituais e festas que marcam a vivência coletiva da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social podem ser considerados bens imateriais. Já o patrimônio material está dividido em bens imóveis – núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais – e móveis – coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos.

Em reportagem do jornal A Tarde, de 15 de janeiro de 2014, intitulada “Bonfim em festa já é patrimônio imaterial”, a presidente do Iphan, Jurema Machado, descreveu o ato como “um compromisso do Estado brasileiro que reconhece a importância da festa não só para a Bahia, mas para o Brasil. Apesar de haver outras manifestações semelhantes, é na Bahia que ela ocorre com mais fervor”, explicou.

Para o antropólogo Ordep Serra, a declaração da dirigente nacional do Iphan, durante a solenidade realizada no interior da Basílica do Bonfim, demonstra desconhecimento da singularidade da festa. “Festas em homenagem ao Crucificado de fato ocorrem em diferentes regiões do Brasil, mas todas tem um caráter penitencial, com ênfase no sofrimento do Redentor, expressões de arrependimento e culpa pelos pecados que tornaram necessário o sacrifício do Filho de Deus, segundo a doutrina da Igreja Católica Apostólica Romana. Na nossa Festa do Bonfim, mesmo nos ritos que ocorrem no interior do templo e são comandados pela igreja, este não é o sentimento predominante. Nela se canta, dança, brinca. A alegria é o sentimento dominante. É seu traço característico, é o que a distingue”.

No complexo ritual que constitui o ciclo festivo do Bonfim,  há outros atos rituais de que a Igreja Católica não tem o comando. Entre eles, o que mais se destaca é a Lavagem, um rito que a igreja combateu e tentou extinguir. “A presidente do Iphan não conhece o rito a que conferiu o registro de patrimônio imaterial. A ministra da Cultura tampouco faz ideia do que celebrou. Na cerimônia de entrega do título, no interior da basílica, não havia baianas, Oxalá não foi lembrado, excluiu-se o povo festeiro. Em um complexo ritual que ocorre tanto dentro quanto fora do templo, a cerimônia externa foi ignorada”, completa o professor.

Registro

Ao contrário do tombamento, cujo objetivo é a preservação das características originais de uma obra, seja móvel ou imóvel, o registro trata de salvaguardar o desejo de uma comunidade em manter viva uma tradição, que pode vir a sofrer mudanças com o tempo.

O antropólogo Luiz Mott destacou a importância histórica da festa como um dos critérios utilizados para a escolha dela como patrimônio imaterial. “A festa é a continuação da festa original em Portugal que se desenvolveu aqui em meados do séc. XVIII, onde as pessoas vítimas de acidentes marítimos pagavam promessas. Na Bahia, a festa de tornou popular com a incorporação de elementos das religiões de matriz africana. A elevação se deve, sobretudo, aos aspectos populares da caminhada e da lavagem”, conta.

Já o também antropólogo Roberto Albergaria, comparou a festa a “um casarão em ruínas”. Para ele, o registro só tem valor simbólico. “O registro é bem-vindo, mas chegou tarde demais, quando a festa está definhando. Ele vem como aquelas estacas de ferro que seguram as construções. Mesmo que o Iphan tivesse reais mecanismos de preservação, daqui a alguns anos, a tendência é o esvaziamento. O cortejo vem diminuindo significativamente. É claro que não dá para congelar a história, porque a tradição vai se refazendo. Não podemos ter ilusões”.

De acordo com Ordep Serra, até agora, o registro trouxe apenas uma mudança, considerada por ele como negativa. “O Estado tentou dar a plena posse da Festa do Bonfim à Igreja Católica, como se esta fosse criadora, promotora exclusiva e senhora absoluta do evento. Tal ato reflete um equívoco e evidencia as severas limitações de nossa política cultural”.

O professor criticou os mecanismos utilizados pelo Iphan para promoção da preservação do patrimônio. “Eu não acho que o IPHAN esteja preparado para isso. Não foi feita qualquer comunicação de um plano para garantir a vitalidade da festa. O registro efetuado pelo Iphan parece consumar-se, neste caso, na declaração do registro. Mas foi-lhe acrescentado o gesto político de reconhecimento da Igreja como dona exclusiva do festejo. Trata-se de uma injustiça”, defendeu Serra.

“Lavagem de Corpo e Alma” gera polêmica

Pela primeira vez a Arquidiocese de Salvador incorporou à programação da Festa do Bonfim a “Caminhada Lavagem de Corpo e Alma”, em que os fiéis saíram da Igreja da Conceição da Praia às 8h, antes do cortejo das baianas, em caminhada até a Colina Sagrada. Mas a iniciativa não foi bem recebida por pesquisadores, que criticam a separação de católicos na Lavagem.

Foto: Julien Karl/G1

De acordo com o Padre Edson Menezes, Reitor da Basílica, muitos fiéis participavam do cortejo “numa perspectiva devocional para pagar suas promessas” e em muitos momentos ficavam perdidos na multidão.  “Então resolvemos dar uma atenção especial ao cortejo agregando essas pessoas e marcando a nossa presença com a evangelização”, explicou o padre ao jornal Tribuna da Bahia.

“Invencionice estapafúrdia” é como Roberto Albergaria classifica, em artigo publicado no Metro1, a nova estrutura da Festa do Bonfim. Segundo ele, trata-se de uma descaracterização do tradicional e multidimensional cortejo, um “intervencionismo clerical” que “acelera ainda mais a decadência da Velha São Salvador”. O antropólogo ainda denominou a iniciativa como “apartheid do padre”. “Em uma demonstração de falta de compreensão da cultura popular baiana, a Igreja separou os bons católicos dos maus católicos. Se o registro como patrimônio imaterial saísse antes, por exemplo, deveria ser proibida a ação do Padre Edson”, afirma.

Quem também criticou a ação foi o historiador e religioso do candomblé Jaime Sodré, que considera um equívoco a associação entre o lúdico e a ideia de sacrilégio. Em entrevista ao jornal A Tarde, o historiador afirmou que, ao longo da trajetória dos festejos no Bonfim há um ciclo de ações orientadas para apagar indícios da cultura afro-brasileira.

Para Ordep Serra, a Igreja simulou verbalmente uma atitude de aproximação com o povo, mas contradisse na prática esse discurso. “Não se faz aproximação tomando distância. Se o Reitor da Basílica realmente quisesse valorizar o préstito encabeçado pelas baianas, sairia junto com ele. Não iria à frente, com outro séquito, de propósito bem diferenciado, a competir com o tradicional – ainda por cima com a vantagem da dianteira. Foi tudo em vão. Pois se está certo o Evangelho, ‘os últimos serão os primeiros”.

Com informações do G1, Tribuna da Bahia, A Tarde, Metro 1 e Iphan.

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Centro Histórico de Salvador terá novos recursos para revitalização

Depois de dispensar pelo decurso do tempo da burocracia  do governo do estado da Bahia cerca de R$ 27 milhões reais do Ministério do Turismo para aplicar na melhoria do Centro Histórico de Salvador, a Bahia está recebendo novos recursos para obras de revitalização do mesmo Centro Histórico.

Desta vez a fonte é o Ministério da Cultura e a Bahia está entre os 20 estados incluídos no projeto PAC Cidades Históricas, que mais receberá recursos, cerca de  R$ 202 milhões, para a recuperação e revitalização do Centro Histórico de Salvador e de monumentos históricos e a restauração de parte do patrimônio histórico de cidades do interior do Estado.

Quatro municípios baianos serão beneficiados: a cidade de  Salvador pelo maior patrimônio e estado avançado da degradação do seu patrimônio receberá (R$142,10 milhões), Itaparica (R$ 13,17 milhões), Maragogipe (R$15,74 milhões) e Santo Amaro (R$ 31,08 milhões).  As obras serão executadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão do Ministério da Cultura e pelo governo estadual.

Fonte: Tribuna da Bahia e Bahia Notícias

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