[Aloísio da Franca Rocha Filho*]
A Bahia dos anos 60 era uma cidade província em busca de uma metrópole capital. Fazia esforço para esse avatar mas o subdesenvolvimento freava uma modernidade mesmo que tardia.
Ninguém melhor narrou por imagens paradas – a fotografia- a vida da cidade que aliás era de uma gostosura e de uma placidez às vezes irritante senão Pierre Verger, um estrangeiro, não aquele que vem hoje e amanhã se vai, mas aquele que vem hoje e amanhã permanece.
“Quando você é a câmera e a câmera é você” como Verger fotografar na sua Rolleiflex esse mundo da comida, da dança, do canto, da proxêmica, das festas populares, do trabalho braçal, do corpo, do traje, dos lugares, dos candomblés, do porto, dos saveiros, etc. dessa Bahia foi um ato de ternura antropológico onde nada, absolutamente nada escapou do seu clic, embora muitas vezes escapasse aos olhos cotidianos dos baianos que viam mas pareciam não lhes enxergar.
Da imagem parada para a imagem em movimento: o cinema. Contemporâneo a esse registro do mundo da cultura popular da Bahia emerge o cinema baiano signo dessa modernidade mas com um certo receio de mergulhar na cultura do povo, na sua identidade pois somente olhando para si e para os seus o cinema poderia requerer o olhar dos cinéfilos e aderentes.
Walter da Silveira inaugura desde 1950 com o Clube de Cinema da Bahia um “roteiro cinematográfico” por assim dizer fora do circuito massivo dos filmes americanos tipo B e C, que dominavam o mercado distribuidor em pleno período da guerra fria e no inicio da ditadura militar. Era um projeto político cultural para debater as inter relações do cinema nacional emergente no contexto de um pais subdesenvolvido e capitalista frente a agressiva ofensiva do “monopólio absoluto de Hollywood” ,na época, uma espécie de colonialismo cultural nos trópicos a disseminar o “american way of life” sem qualquer contraposição fílmica nacional. Prestigiar o cinema nacional na linha de filmes que revelassem critério crítico, estético e político da nossa cultura era o projeto de Walter da Silveira daí o seu vivo interesse na filmografia de Roberto Pires diretor de “A Grande Feira” para ele um criador e diretor de “um cinema absolutamente contemporâneo”. Com pertinência ele indagava: “por que nós no Brasil, não nos insurgimos contra a nossa condição de colonos cinematográficos dos Estados Unidos?” Então e depois Roberto Pires, Glauber Rocha e tantos outros souberam com talento responder essa indagação.
Na seqüência do Clube e inspirado por Walter nasce o Cinema de Arte da Bahia logo um marco cultural na cidade. Sem ainda contraponto nacional cinematográfico expressivo à hegemonia de Hollywood Walter da Silveira vai buscar este contraponto nas experiências fílmicas da Europa.
E aqui me vem a boa recordação dos primeiros filmes e sessões do Cinema de Arte da Bahia no Cine Guarany. O Guarany, muitos lembram, criou um diferencial para o início das suas sessões. Ao som da ópera “O Guarany”, de Carlos Gomes, as luzes lentamente se apagavam até o jornal. Um troço elegante, bacana mesmo, próprio do auge e da distinção da era do cinema. Na entrada da sessão recebíamos uma espécie de “folder” com a ficha técnica, o elenco, a sinopse e foto de passagem do filme. Na sala de espera rolavam papos sobre a programação do Cinema de Arte, o “mundo” cultural e diversificado da Bahia que vivia uma efervescência, tudo temperado pelas línguas bem humoradas de um seleto público de escritores, professores, artistas plásticos, atores e diretores de filmes e de teatro, jornalistas, profissionais liberais e estudantes.
Além de crítico de cinema Walter da Silveira era um bem sucedido advogado trabalhista. Antes da exibição não dispensava uma breve preleção voz grave e pausada mais ou menos assim: “meus amigos, vamos assistir hoje a uma obra prima do cinema… O filme é do diretor …, inova na linguagem, na fotografia, no diálogo… e merece a nossa atenção para percebermos essas inovações e apreciá-lo Vamos assisti-lo em silêncio e com educação.” Após a sessão seguiam-se sempre provocativos debates.
Toda uma geração da Bahia deve a Walter da Silveira essa guinada para conhecer e prestigiar não só o cinema nacional, mas a “nouvelle vague”francesa, o neo-realismo italiano, o cinema espanhol, o sueco, o alemão, o russo, o tcheco, o japonês. Godard, Truffaut, Resnais, Pasolini, De Sica, Fellini, Visconti, Buñuel, Bergman, Eisenstein, Kurosawa todos na magistral programação “Sete Semanas de Filmes Estrangeiros” 49 primorosos filmes exibidos. Lembram?
Onde estiver, obrigado Walter da Silveira!
*Aloisio da Franca Rocha Filho – Jornalista. E-mail: <[email protected]>. Artigo originalmente publicado na Tribuna da Bahia, no dia 14 de setembro, pág. 11 – Cidade